Rui Barbosa
Nelson Mello e Souza
A figura de Rui Barbosa tem a especial característica de despertar reações extremadas. A dose de emoção contida nestas reações não é pequena.
Grande orador, validou, na prática da vida, a lógica de Cícero. A retórica tem de ser percebida como a forma civilizada de esclarecer diferenças, transmitir o pensamento com beleza e lucidez, defender as idéias que se pretendem corretas. Seria a ponte comunicativa entre a solidão do estudioso que se consome a si mesmo no silêncio das noites de leitura e a atenção de quem necessita ouvir o que ele tem a dizer, ganhando , com isto, valor político e social. Assim entendia Cicero; assim percebia Rui a função social do orador.
Eminente advogado, artífice da Constituição republicana de 91, mentor intelectual do novo Governo que surgia meio atarantado ante o volume dos problemas a resolver, Rui desempenhou papel estratégico nestes anos iniciais do Provisório.
A República surgira de repente, não necessariamente da vontade do povo que a tudo assistira “abestalhado” na expressão famosa de Aristides Lobo. Não surgia como a Venus de Botticelli, inteira e pronta para as tarefas da vida, mas como jovem surpreendida a vestir-se às pressas em seu castelo arrombado, ante a chegada inesperada de um bando de admiradores. A Republica que se tentava compor podia ser o sonho encantado de muitos. Na realidade social do Brasil, seguramente não estaria em condições de atender a todas as esperanças. Situações e valores herdados da história são difíceis de serem alterados. Além dos interesses econômicos que influem no processo decisório. Tudo se envolvia numa teia de situações objetivas que os novos lideres teriam de entender para melhor enfrentar.
Envolvido pelo processo, a figura de Rui e do papel que veio a desempenhar é, por isto mesmo, controvertida. Louvor e detração igualmente desmedidos acabaram por distorcer sua importância histórica.
Bolivar Lamounier, no seu interessante ensaio sobre Rui, escrito por ocasião de seu sesquicentenário, ( ed. Da Casa de Rui Barbosa) tenta reerguer o vulto autêntico dos escombros legados pelo culto vulgar de suas qualidades e as acusações igualmente vulgares de seus equívocos. Para ele o que chama de “folklorização da figura de Rui” muito colaborou para a história dar os toques imprecisos que a mão dos simplistas ajudaram a compor. De um lado tínhamos o político a sincrônico e abstrato que tentou aplicar à realidade semi indigente do Brasil, idéias sociais e econômicas que surgiam em outras condições civilizatórias. Transpor soluções institucionais de contextos históricos que pouco ou nada tinham com o nosso seria a grande marca de uma alienação difícil de perdoar.
De outro lado do espectro simplista surge a figura endeusada do “Àguia de Haia”, diplomata brilhante, o escritor e orador competente, o jurista que concentrava um saber universal, simbolizando um valor que enobrecia a inteligência brasileira e funcionava como modelo para as novas gerações, defensor intransigente da independência econômica do Brasil.
Entre as duas posições abre-se um espectro de desacertos que envolve o debate numa névoa de emoções e ficções. O que dificulta uma análise serena de seu valor. Acima de tudo de sua ação no Ministério da Fazenda do Governo Provisório.
Não pretendemos esclarecer tão sólido dilema. Mas podemos contribuir com alguns esclarecimentos para fortalecer uma posição a meio caminho entre extremos tão emocionados.
Seu pensamento pode até não ser mais nem digno de análise. Foi superado pelo tempo. O que Rui defendia já foi incorporado como normal à verdade social de agora.
Por exemplo: na campanha política de 1919 avança em sua solidariedade aos deserdados da sorte propondo divisões da renda para construção de casas populares, limitação do trabalho a oito horas por dia, mecanismos de proteção, segurança e higiene nas fábricas, seguro obrigatório contra acidentes, tratamento igual em termos de remuneração para o trabalho das mulheres, com licença maternidade, estendendo ainda ao homem do campo medidas de proteção, incluindo um sistema de fiscalização que impedisse a obrigatoriedade do colono pobre de comprar apenas no armazem do senhor da terra, pelo preço por este fixado.
Não obstante eram idéias que mostravam avanço surpreendente para o Brasil da época. A muitos parecia uma espécie de sonho. Coisa de quem em cujo olhar percebemos a obstinação “dos que se despedem para sempre da razão”, na frase de Gilberto Amado.
Tal plataforma foi combatida, como não podia deixar de o ser, pelo poder oligárquico. O eleitorado do interior, que Rui tanto tentara proteger, livrando-o de sua carga centenária sequer o ouviu. Perdido na solidão de sua ignorância, dependente do patrão, do dono do poder, votou como sempre, atendendo à ordem dos capangas do chefe político. Rui foi derrotado, mais uma vez.
Mas se ha uma verdade da vida é a de que a utopia de ontem pode ser a realidade de hoje, transformando-se em verdadeiros axiomas sociológicos.
Rui podia ser um “sabio de gabinete” mas à luz do que está registrado em sua campanha. nada tinha de “cego para com o seu povo sofredor, como classifica o ideólogo Darci Ribeiro. (“Aos Trancos e Barrancos; como o Brasil deu no que deu”, R.J. ed. Guanabara, 1985).
Nunca esteve de costas para “o povo preto” nem indiferente aos “brancos pobres”. O consistente abolicionista, o advogado gratuito dos escravos e dos libertos sem recursos o homem que considerava a abolição, da forma como foi realizada, uma “ironia atroz” porque concedia a liberdade sem dar aos que ficavam livres nenhum meio decente de usá-la pela garantia de terra ou de emprego, não podia ser julgado desta forma.
Mas o foi. O ideólogo é sempre o homem de uma única verdade. Sua auto condescendência o coloca num patamar de desdém para com toda a opinião que não coincide com a sua. Por isto nenhum deles, e Darci Ribeiro não foi o único, foi capaz de notar como Rui estava ligado à causa dos deserdados e chegou a defender estas teses numa “segunda emancipação” como podemos ver em seus “Escritos e Discursos Seletos” a pgs. 426-428. Visão correta a nosso ver, similar à tese central do livro de Graça Aranha , “Canaã”.
O fato de ter lutado sempre por uma democracia liberal em seu processo de construir um arcabouço institucional viável, não o faz , nem a ele , nem a ninguém um “reacionário” e sim um humanista que despreza a volúpia do poder concentrado nas mãos do “fuhrer”, do “ companheiro “, do “lider carismático”.
Não pode ser reacionário quem afirma: “ já que do capital e da riqueza é manancial o trabalho,ao trabalho cabe a primazia incontestável sobre a riqueza e o capital. ( Ver “Escritos Seletos”, op. Cit. Pg. 425) .
Podemos hoje contestar esta posição sob o ângulo de um conceito arcaico e simplista de “trabalho” que remonta ao fisiocrata Bloisguilebert no século XVIII, foi usado por A. Smith e Ricardo, até por Karl Marx no século XIX. Mas não é possível negar sua sintonia emocional com a sorte dos mais pobres muito menos considerá-lo como um politico apenas preocupado com seus iguais, um ideólogo da classe média, como afirma Guerreiro Ramos em seu “ A Crise do Poder no Brasil”, Zahar, R.J. 1961
II
Rui pode ser mal percebido porque a vida o obrigou a tornar evidentes suas ambivalências. Surgindo para a arena pública como um liberal meio abstrato e livresco em seus anos de juventude foi, pouco a pouco, transformando-se num homem de idéias que merecem, pelo menos, algum respeito por parte de seus críticos mais amargos.
Esta evolução foi possível devido à sólida cultura humanista, a de verdadeiro polimata renascentista, que acumulou em seu processo formativo. Do idealista vago para o pragmático com postura marcada pela objetividade dos anos em que assume a responsabilidade histórica na política da República, nota-se certa distância ideológica bem definida.
Em sua juventude Rui trancava-se na biblioteca de sua família absorvendo livros com a obstinada sofreguidão do apaixonado irremediável. Em cada obra nova parecia apreciar o êxtase de uma aventura inesperada com amante jamais provada.
A despeito de seu físico franzino, quase ridículo, magro e feio, soube se impor junto aos colegas da mesma idade. Tanto no ginásio quanto, principalmente na Faculdade de Direito. Sem complexos, compensou a diferença física com talento precoce, conversa inteligente e capacidade de persuasão. Foi escolhido como orador de sua turma devido ao brilho da fala, a correção de sua escrita e o domínio lógico e artístico da linguagem.
Não sei se Rui, mais adiante já formado, a brilhar nas batalhas juridicas de Salvador como mais tarde o fez na Corte, pode ser considerado o “advogado ciceroniano cujo advento assinalou uma nova etapa de nossa cultura”.
Assim o qualifica seu incondicional admirador San Thiago Dantas. “Nova etapa de nossa cultura” soa um pouco forte. Sei apenas que sua ação política na Câmara e mais adiante como Ministro da Fazenda foi importante em fase estratégica de nossa evolução política.
Quando San Thiago Dantas escreve, nos anos 50 do século XX, a imagem de Rui como grande escritor, já estava até meio desmaiada. Nem mesmo este honrado e lúcido discípulo o toma como modelo. Como muitas de suas idéias seu estilo havia sido devorado pelo tempo.
Não se escreve mais como Rui Barbosa o fazia. Frases como “gula de escândalo apoiado pelas mais lodosas paixões de partido” como usou para acusar opositores, não mais se vê nos Anais da Câmara. Tampouco são toleráveis períodos espichados, que se volteiam sobre si mesmo, em contornos de bailarinas orientais, cheios de adjetivos a se reforçarem reciprocamente, às vezes alongando-se por dez ou quinze linhas seguidas, antes de nos permitir respirar um pouco pela presença caridosa de um ponto parágrafo.
Não obstante, com exceções como Machado e mais adiante Lima Barreto, o barroco literário era o estilo da época. Foi por ele desenvolvido com a elegância permitida pelos tempos.
Rui acabou como um personagem admirado. Sua morte comoveu o país e arrastou multidões às ruas.
Como foi feito este percurso ?
Depois de rápida carreira em sua província, a Bahia, Rui Barbosa foi eleito deputado geral. Chega à Corte em 78. Estávamos em meio a dificuldades provocadas por endividamento progressivo cuja origem, na verdade, vinha desde a Independência. Neste fim dos anos 70 o processo vinha se agravando com as necessidades de financiar, pela via dos bancos estrangeiros, especialmente dos Rotschilds, nossa modernização.
Iniciara-se, desde os anos 50 a implantação do transporte ferroviário, a melhoria das comunicações pelo telégrafo, a iluminação das cidades com o gás , o aperfeiçoamento dos portos. Os deficits com o serviço da divida, de fretes e seguros além de contratos necessários para ampliação das obras públicas, tornavam mais difíceis as soluções internas para financiá-los.
A República inclusive cunhou uma frase famosa: “o Império é o deficit”.
Não foi bem assim. Com o café em alta o Império teve fase que muitos classificam como exemplar. Mas a imagem da inação, do centralismo e da estagnação relativa ganhou força, legitimando as reformas propostas pela República nascente.
Com as oscilações do preço do café, então nossa maior riqueza, a conjuntura do ultimo quarto do século abalou a segurança do Império. Houve curiosa oscilação entre a confiança e a perplexidade. No ano de 75 decretara-se a falência do Banco Mauá, dirigido pelo maior e mais importante empresário nacional. Seus dirigentes não tiveram do Império o apoio que os modernos bancos americanos tiveram do orçamento dos EEUU.
Idéias novas iam surgindo na Europa, acordando o gigante adormecido pelos trópicos quentes. Importantes avanços lograra o ideal positivista de perfil republicano. Em 1970 há o lançamento do Manifesto Republicano e três anos depois organiza-se a primeira convenção republicana em Itu.
A crise militar, iniciada com as queixas dos militares desde o fim da guerra do Paraguai, vinha se agravando de modo preocupante. A pressão abolicionista que provocara a lei do Ventre Livre em 71 aumentava o descontentamento rural e como se não bastasse, a difícil questão religiosa explode em 72.
O conjunto forma um quadro preocupante ante um imperador precocemente envelhecido, suspeito de ataques epilépticos, gerando indícios de tormenta grave nos céus do Império.
O açúcar vinha sendo suplantado pelo café, responsável nestes anos finais do Império, por cerca de 60 % de nossas exportações. A decadência relativa do açucar vinha desde muito tempo, na verdade desde o bloqueio napoleônico, acrescido nestes anos decisivos , pela forte concorrência do Caribe.
O Império nada fizera de efetivo para alterar o fato de ser a riqueza brasileira assentada na monocultura de exportação.
Ao chegar à Câmara Rui encontra os grandes nomes de nosso momento político. Sendo um observador da vida nacional, arguto leitor de tantos autores estrangeiros, dedicado seguidor do momento industrial europeu e norte americano, não poderia estar muito a vontade num meio que se mostrava indiferente às bases que o sustentavam em sua pompa e sua retórica. Mas logo se adaptou.
A elite política compunha um corpo emplumado e arrogante, cioso de suas prerrogativas, ligado entre si por laços de familia e de estamento. Com seus pés solidamente assentados no regime escravo, montado sobre monoculturas de exportação, uniam-se liberais e conservadores na sustentação do mesmo. Era um retrato do desdem ideológico para com o atraso do Brasil.
A Câmara a que Rui chegava estava diante da pobreza geral que o século havia legado ao Brasil. E não se mostrava diferente das Câmaras anteriores em sua resposta a ela. Refletia a dinâmica do Império.
O Brasil monocultor sempre oscilara, como nos diz J. Normano, no seu “Evolução Econômica do Brasil” ( Cia Ed. Nacional, 4ª. Ed. 1945) em “flutuações que espantam”.
Referia-se este historiador de nossa economia ao aparecimento e desaparecimento de sistemas econômicos inteiros, os famosos ciclos. Era o açúcar, o algodão, o cacau, o tabaco, mais adiante o ouro, a prata, os diamantes, a borracha funcionando como eixos da estruturação socio econômica de regiões e até do pais como um todo. Sujeitos à precária ação do tempo, ao esgotamento das terras, aos humores e preferências do comercio exterior e da taxa de câmbio, a monocultura não garantia nem segurança, nem independência. Tornava nossa soberania vulnerável ao imperialismo econômico que já avançava a passos de gigante para envolver o mundo conhecido. A situação dos ciclos podia espantar a este historiador do século XX, mas não aos personagens que a sustentavam com indiferença.
Na vertigem dos novos tempos aos quais o Brasil seguia indiferente, os EEUU, a ex-colônia inglesa, tão populosa quanto o Brasil o era na virada do século XIX, quando nos tornamos independentes, também originalmente escravocrata e monocultora, muda sua relação econômica. Com lideres firmes e astutos como Hamilton supera o agrarismo endêmico de um Jefferson e dá inicio a um progresso material e educativo surpreendente, avançando a passos rápidos. Com bem articulado projeto industrial, encorpa-se a economia.
Desde o inicio do século XIX esta mentalidade já tinha seu perfil definido. Basta referir um fato. Em 1801, ainda em guerra com a Inglaterra a nova sociedade americana era tão pobre ou mais pobre que o Brasil de então. Pois teve a audácia de adquirir por um milhão de libras ouro a “Luisiânia” da França, aproveitando as dificuldades financeiras do maior pais do mundo para financiar suas guerras napoleônicas.
Notemos: o nome é enganador. “Luisiânia” representava na verdade, não o pequeno Estado americano de hoje, mas o conjunto das possessões francesas no meio oeste americano, além das Rochosas. O nome era dado em honra ao Rei de França. A aquisição destas imensas terras vazias e desconhecidas favoreceu a rápida expansão ulterior.
Por outro lado, o conceito de educação dominante com aplicação cientifica e tecnológica quase obsessivas, logo rendeu dividendos evidentes. Com a preocupação inventiva já demonstrada desde Benjamim Franklin, foi inerente ao processo um forte desenvolvimento técnico. Em 39 o gênio de Goodyear cria a vulcanização da borracha, inicio de uma nova e portentosa industria com o seu nome. Já em 45 são fortes o suficiente para anexar, à força, o imenso território do Texas chegando ao Pacífico pela California. Por lá descobrem ouro em 47; em 59 perfuram o primeiro poço de petróleo na Pennsilvânia, com tecnologia original, em 63 abolem a escravidão, em 67 compram o Alaska ao regime Tzarista da Russia e fundam a Standard Oil em 1870.
Do outro lado do Atlântico o imperialismo da Era Vitoriana atinge o seu grande momento no dominio da India e na divisão da China. Pouco adiante o avanço imperialista europeu na Asia leva a França a transformar a Cambodja num protetorado. Conquista-se o Egito, abre-se o canal de Suez facilitando o comercio com a Asia. Em 79, no ano seguinte ao da estreia de Rui na Câmara, os belgas anexam o Congo.
Rui chegava portanto à Corte no bojo de uma Era de grandes transformações mundiais.
O Brasil, no entanto, seguia a mesma cadência mofina e sem graça, com sua riqueza sempre sujeita às variações de preço dos produtos de exportação.
A entrada deste jovem deputado no palco maior da política brasileira ocorre em meio às consequências dramáticas da devastadora seca do nordeste, que se inicia em 1877.
E o como se comporta esta Câmara ante tais realidades?
Debates e mais debates sobre interesses eleitoreiros menores, repercussão de intrigas de corte, brilharecos de oradores flutuantes no mar de espumas que lançavam aos ares, sem fundo, sem base, sem alicerces fincados nos problemas nacionais. Lá estavam nossos pro-homens, todos bons de letras, ostentando saber e astúcia. Entre eles figuras imponentes como Saldanha Marinho, Barão Homem de Mello, José Bonifácio o Moço, Lafayette Pereira, Afonso Celso, futuro Visconde de Ouro Preto, a quem afinal, Rui sucederia no Ministério da Fazenda.
Diante dele esta, portanto, a grande Assembléia Geral do Império, solene, austera, metida em vestes pretas, a discursar e discursar com olhar de lince para os colegas admirados e a galeria lotada de basbaques. Tudo em busca de atenção e glória.
Rui, com seus 29 anos, não parecia diferente de nenhum deles, apenas no fato de ainda carregar na alma os vincos de um idealismo jurídico persistente. Chegava à Câmara ao mesmo tempo que Nabuco, ambos eleitos, como todos, por arranjos locais e acertos políticos entre os potentados regionais.
Vale a pena este pequeno parêntesis para rever o momento, porque, de certa forma ele nos irá mostrar a transformação pragmática no idealismo original de Rui Barbosa. O inicio de suas muitas transfigurações até chegarmos ao Ministro da Fazenda ou o Ministro de nossa independência econômica como o chama Humberto Bastos.
Ao chegar, encontrou-se com um debate veemente sobre a anulação das eleições realizadas em São Paulo. Era o processo que definia a validade dos eleitos, definindo interesses de grupos, bloqueando ou favorecendo nomes, como sempre se fizera. Nada de novo.
Na tribuna, falava José Bonifácio em defesa da candidatura de um companheiro de Partido contra a do sr. João Mendes. Rui andara envolvido na chamada “verificação dos poderes”. Conhecia o assunto. Sua convicção estava firmada. Percebe a boa oportunidade de brilhar e, mesmo com nada lhe sendo pedido por ninguém, muito menos pelo partido, parte ao encontro de Bonifácio.
Vamos admitir, generosamente, que Rui defendia princípios. E o fazia com a sinceridade de um liberal para quem a justiça era a norma suprema da vida. Afinal, Rui nem conhecia o tal senhor João Mendes.
Presumo que boa parte de sua motivação foi similar a de um pistoleiro jovem que nas disputas de vida e morte do oeste americano daqueles tempos, desafiava um grande nome consagrado,simplesmente para firmar o seu. Parecia evidente que Rui buscava seu espaço, sua glória. Enfrenta o gigante parlamentar acusando-o de pronunciar um discurso de “lógica inconsequente, contraditória”.
Tudo isto está corretamente documentado no livro de Rubem Nogueira, “História de Rui Barbosa” (ed. Da Casa de Rui Barbosa, 1999, pgs, 96/97) com base nos Anais da Câmara.
Pode-se imaginar a perplexidade que começa a tomar de assalto aquele conjunto de homens hábeis no manejo de interesses práticos, versados nas artimanhas e no simbolismo mudo das conveniências e dos apoios firmados. Era uma Câmara bojuda de espertezas. O jovem orador deve ter sido olhado com espanto. Afinal ninguém poderia entender esta defesa com base apenas em princípios éticos. Ética era algo usado como figura de retórica, nada mais.
A posição pragmática dominante veio em seguida. Foi expressa na fala do deputado que o aparteia: “ V.Excia é imberbe... se vai assim, vai mal” ( citação dos “Discursos Parlamentares”, em “Obras Completas de Rui Barbosa” vol . 6, t. 1, 1879. apud Rubem Nogueira, pg. 96).
O aparte representava algo que se situava entre o enfado e o sorriso de irônica complacência. E a decisão final foi a esperada: aprovar o candidato de José Bonifácio, o senhor Gavião Peixoto, homem ligado a concessionárias de serviços públicos. Negou-se a validade da eleição de João Mendes. O respeito à verdade legal tão bem exposta por Rui Barbosa, desaparecia da agenda. Rui teria muito que aprender!
E, sem dúvida o fez, rapidamente.
Pouco depois o poderoso Cansansão de Sinimbu, presidente do “Banco Nacional” deixa esta presidência para assumir o cargo de Presidente do Conselho de Ministros. O Banco que ele dirigiu por tanto tempo tem sua falência oficialmente decretada no ano de 79. A chamada “Relação da Corte”, depois de longa investigação declara a falência culposa. Os diretores foram pronunciados, inclusive Sinimbu. Foram todos presos menos Sinimbu valendo-se da imunidade do cargo. A controvérsia na Câmara foi intensa. Tratava-se do jogo que a Câmara sempre jogou muito bem, a disputa entre situação e oposição. Silveira Martins liderava os ataques. Era um orador temivel. Sinimbu não podia, moralmente, continuar a frente dos destinos do país. ( Ver os Anais do Parlamento Brasileiro”, sessão de 1879, t. 4, pg 516).
A posição de Sinimbu junto ao Parlamento e a Corte era sólida. Não se deu por achado e defendeu-se discursando em causa própria. Silveira Martins contra atacou com veemência mostrando que a justiça, no caso, sairia desmoralizada porque se as decisões só valiam para os pequenos e não para os grandes não se tratava de justiça e sim de um jogo de poder. Seria em todo este caso um “naufrágio institucional”, como o qualifica. Se nos for possível uma comparação não se tratava de nada muito diferente do que vemos hoje em dia.
Como diferente não foi a reação de Rui. Mostrando que aprendera rápido, investe contra Silveira Martins e defende o poderoso Sinimbu. Para o “novo Rui” o problema moral não era o de Sinimbu e sim o de Silveira Martins que servira no Gabinete Sinimbu e não poderia ir contra ele. O que Rui estava fazendo era um jogo de luzes, escamoteando a essência da questão para ofuscá-la com fatos periféricos que não se referiam ao problema central. Pretendia apenas mostrar seu valor ao Governo, atacando um ex- ministro já desnecessário para defender quem estava no poder.
Pouco adiante, num julgamento politico, feito por uma Comissão da Câmara, Sinimbu foi inocentado. A vitória consolidou o ascendente prestigio da jovem estrela do parlamento, o deputado que mais trabalhava, elaborando discursos e pareceres.
Não importava muito a ninguém por lá o fato do Brasil continuar o mesmo. Este notável corpo decisório amanhecia diariamente soterrado pela avalanche de pareceres sobre as questões mais triviais que iam surgindo aqui e ali. Seu conceito de trabalho derivava do volume dos papeis que se produziam, jamais da importância estratégica dos temas abordados por eles.
Já por esta época Rui era um dedicado abolicionista. Mas o fenômeno em nada o prejudicava junto ao Governo. O abolicionismo neste inicio dos 80 já era uma tendência que vinha crescendo na consciência nacional. O fato só fez ajudá-lo na consolidação de seu prestigio como liberal assumido, colocando-o em sintonia com a inteligência dos tempos. Atacou ferozmente a proposta de Rodolfo Dantas , a da abolição gradual e elaborou um trabalho de cerca de 120 páginas sobre o tema, transcrito nos Anais acima referidos, t. 3, pgs 1-121 combatendo a cegueira social e moral dos interesses escravocratas. Seus argumentos eram basicamente jurídicos. Para ele, a legislação civil nunca legitimara a escravidão e o Alvará de 30 de julho de 1608 chegara a condenar o cativeiro. Omite o fato de que neste caso a referência eram os indios e não os negros africanos. Prosseguiu afirmando que nenhum texto legislativo subsequente “transmudara” – palavra por ele usada – esta situação. E por ai, baseado no direito romano, ia demolindo as bases de sustentação legal do escravismo. Rui provava a ilegitimidade histórica da propriedade do homem sobre o homem. Estava certo. A marcha do abolicionismo não foi detida e cresceu de modo avassalador. A escravidão foi abolida pouco adiante, de um golpe só.
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A partir desta visão do Rui liberal e jurista e do Rui que se adaptara ao jogo politico, o homem que tinha sobre a industrialização do Pais uma opinião próxima a sustentada pelo Império, sendo contra qualquer medida proteccionista em nome da liberdade, tal como se pode ver nos Anais do Parlamento Brasileiro, 3º. Ano da 17 Legislatura, sessão de 1880, pg 282, será possível melhor avaliar o grau de sua transformação quando assume a responsabilidade concreta de Ministro da Fazenda.
Rui não era um republicano originário. Tudo indicava sua preferência pela monarquia. Devido a esta preferência fora convidado para participar do Gabinete Ouro Preto, o ultimo do Império. Não aceitou o cargo por sua obsessão pela democracia. Não aceitava a concentração de poderes e julgava que as províncias deviam eleger seus presidentes. Ao poder central não competia este direito. Como Ouro Preto não concordou, retirando o convite feito, Rui em contrapartida aderiu ao movimento federalista revolucionário que surgia com as vestes institucionais da República. Dentro desta nova linha chegou a ser convidado para uma reunião secreta convocada por Deodoro, como nos indica José Murilo de Carvalho em seu recente “D. Pedro II “ed. Cia. Das Letras, 2007.
Ao fim da década o Brasil defrontava-se com situação difícil. A abolição provocara desacertos na economia monocultora, as ondas de migrantes que chegavam ansiavam por emprego e o País muda de regime político depondo o Império e proclamando a República. Não nos importa analisar as marchas e contra marchas, as indecisões do monarquista Deodoro , a ação dos grupos positivistas e a dinâmica do processo. São fatos bem conhecidos. Pertencem à história desta época. Importa-nos, isto sim, entender os problemas práticos do Governo Provisório.
Rui é convocado para a pasta da Fazenda e lá permanece por 14 meses.
O Governo enfrentava problemas de emprego, crise cambial, de renda, de produção. Rui, o grande liberal, sentiu que sem a mão do Estado envolvida até a alma no processo não seria possível reverter a situação herdada do Império. Era importante conter o domínio das forças ligadas aos interesses da monocultura. Impossível confiar no livre jogo do mercado porque impossível ao mercado funcionar se ele ainda não existia como mercado. Os interesses cuja dinâmica poderia movimentá-lo teriam de ser criados. Nada do gênero existia num país monocultor, dependente da exportação e sem empresas industriais de porte.
A construção de um Estado com capacidade de intervir, garantir as emissões de moeda carente com a crise que retraira o ouro em circulação, estimular novas empresas, reativar e reordenar a economia exigia uma política econômica compatível. Importante a criação de novo arranjo interno capaz de estimular a formação de um mercado de capitais, favorecendo a criação de novas empresas com condições de substituírem as importações e gerarem empregos.
Era a defesa da industrialização. Tratava-se de verdadeira virada econômica, fenômeno sempre mal acolhido no Brasil do Império monocultor. Rui unia-se a ilustres antecessores desta cruzada dificil. A Cunha Matos, a Lino Coutinho, a Alves Branco, a Mauá, como aos que vinham com sua geração , como Serzedelo Correa, Amaro Cavalcanti e outros.
Houve sérios problemas de tática. Toda proposta de reforma e principalmente as que pretendem operar sobre terreno inseguro e frágil exigem flexibilidade adaptativa para passar do verbo a ação, das idéias às realidades. Há necessidades de ajuste a um espaço social real. Acima de tudo há necessidade de contagens acertadas de “tempo”, no sentido quase musical da expressão. Rui não parece haver reconhecido que seu alegro virtuoso teria de ser precedido de um adágio preparatório. Atropelou. Usou o poder do Estado e sua capacidade pessoal de confronto. A partir do Decreto 164, de 17 de janeiro de 1890 o Governo Provisório deu plena liberdade para a organização de sociedades anônimas. Criaram-se sociedades anônimas com capital de 1 milhão e 169 mil contos quando em todo o Império o capital mobilizado pelas empresas criadas não passara de 400.000 contos .
Os especuladores aproveitaram-se da situação. Empresas de belos titulos e melhores promessas de lucros constituíram-se com rapidez imprevista, lançando ações garantidas por títulos públicos.
Como nos diz José Arthur Rios em seu brilhante estudo sobre o chamado “encilhamento” publicado em nossa Carta Mensal 531, de junho de 1999, ações fantasmas eram negociadas com pressa e frenesi, dobrando e triplicando lucros sem que houvesse base empírica real. Em suas palavras, “enchia a cidade de um barulho de feira, de um alarido de leilão”, paraíso dos intermediários sem escrúpulos, dos financistas de ocasião.
Por entender sob esta perspectiva restrita, muitos criticos e estudiosos de nossa história e de nossa economia não chegam a dar muita importância a passagem de Rui pelo Ministério da Fazenda a não ser para incriminá-lo como um arrivista no assunto, um mau economista e um precipitado homem de Estado . Rocha Pombo mal o menciona em sua história de dez volumes; Calmon não lhe é simpático no seu estudo em três volumes sobre a história social do Brasil, Nicia Vilela Luz, no seu bom trabalho sobre a industrialização do Brasil dedica reduzidas páginas a sua atuação no comando da política econômica desta fase. Praticamente descarta sua importância, culpando-o por liberar mil demônios loucos, como seres que saem das telas de Hieronimus Bosch para enlouquecer os brasileiros e levá-los a atos de irresponsável ganância, tal como retratados por Taunay, um dos aristocratas contaminados por este frenesi de duendes.
Em nenhum deles, como foi o caso de Nicia, cuja base maior parece haver sido justamente o hoje desacreditado livro de Taunay,, encontramos a isenção de Arthur Rios ao mencionar a Exposição Financeira de 31 de dezembro de 91. Nesta Exposição, documento oficial, ele esclarece a origem da crise de especulação e a desvincula de sua política econômica. Ela já vinha dos últimos meses do Império nas atividades da Bolsa de Valores presidida à época pelo futuro Barão de Oliveira Castro, agraciado com o título a seis dias do fim do Império justamente por sua atividade de dinamizador da economia.
Ouro Preto, que se tornara intransigente inimigo de Rui, teve a grandeza de reconhecer que a especulação da bolsa teria começado neste período do Império. É só consultar seu livro “ A Década Republicana”. R. J., pg 87.
Na verdade o que muitos parecem não ver é que em janeiro de 89 o Gabinete Ouro Preto tomara a iniciativa de isentar as novas empresas que se criavam da obrigatoriedade de prévia autorização governamental. Favoreceu a criatividade por um lado e a especulação por outro. Em 89 a fundação de sociedades anônimas e os lançamentos de ações entraram em franca expansão. Nesta fase tem inicio o que veio a ser conhecido como “encilhamento”. Foram criadas em sequência 17 bancos, entre os quais o Provincial de Minas Gerasi, o do Rio de Janeiro,, de Curitiba, o Mercantil de Santos e tantos outros mais.
O Visconde de Ouro Preto alarmou-se como se vê em sua já referida “Década Republicana”. Era o inicio da chamada “febre de negócios”.
Quando Rui assume, na verdade, tenta ordenar o processo, conter a especulação para defender o que lhe parecia essencial, a industria emergente.
Se o Governo Provisório acabou acelerando a linha existente deveu-se ao objetivo de prover um volume de emissões que ampliasse o meio circulante e pudesse acompanhar o numero de negócios novos e transações correspondentes, além de salários e financiamento aos imigrantes que recebiam para se instalar.
Para o novo Rui a industria seria o alicerce da democracia e ademais qualquer regressão econômica colocaria em risco o novo regime favorecendo as tentativas do retorno monárquico.
A política de Rui, portanto, foi não só orientada por preocupações ligadas à consolidação do novo regime, senão também voltadas para a mudança do sistema monocultor. Tentou o desenvolvimento de um parque industrial capaz de iniciar o processo de emancipação econômica do Brasil.
Consultemos suas “Obras Completas”, vol, XVIII, t. III, pgs 129-130. Lá está; “ Nosso grande erro tem sido aplicar ao Estado, em grande escala, o sistema geral seguido pelos nossos ricos agrícolas; produzir café, ainda que tenham de comprar tudo o mais, inclusive gêneros de primeira necessidade que eles mesmos podem produzir”.
Com a elevação da cotação dos títulos públicos, outra de suas medidas, tentou melhorar a renda da classe média, aumentando o volume do consumo nacional e estimulando em processo de retro alimentação, o aumento da produção e do emprego.
Talvez por isto, e muito mais, Aliomar Baleeiro, teve razões justificadas para escrever o seu “Rui- um Estadista no Ministério da Fazenda”, obra de 54. E Celso Furtado mais ainda quando propõe que se desvincule a especulação do “Encilhamento” da política econômica proposta por Rui. A primeira estaria ligada às chamadas “bolhas” de agitação financeira comuns no caso da Inglaterra com o South Sea Bubbles, o famoso Panamá francês como antes houvera a explosão de negócios fantásticos em torno da compra e venda de tulipas na Holanda. Fenômenos estimulados por eventos inesperados, como nos mostra Charles P. Kindleberger em seu importante “Manias, Panics and Crashes – a History of Financial Crisis” publicada pela Basic Books em 1978.
Nada tem a ver com a política econômica inglesa, francesa e holandesa, assim como o nosso encilhamento não pode estar ligado à politica econômica do Provisório. Decorrem da ganância irresponsável que é marca indelével da condição humana, especialmente do homem do capitalismo moderno. É só consultar os nomes dos ilustres especuladores para ver que não se tratava de indivíduos suspeitos, de moral duvidosa e sim da elite social brasileira, absorvida que foi pela febre do ganho multiplicado.
Diante de tanta e tão evidentes confusões interpretativas parece justa a suspeita de Heitor Ferreira Lima, no seu “História do Pensamento Econômico do Brasil” editado pela Brasiliense . Para ele não se pode descartar alguma articulação misteriosa, muito bem escondida nas sombras da história, para incentivar o que ficou conhecido como “Encilhamento”. Tudo feito para desmoralizar Rui Barbosa e seus esforços orientados para acelerar a industrialização do Brasil . A verdade se mantém em “densa escuridão” e Rui teria sido atirado ao ostracismo por ações inteligentemente articuladas por opositores do regime e defensores do agrarismo.
Compete a nós, modernos , desenvolvermos a pesquisa no silêncio das ondas mansas que o mar dos tempos favorecem. Só assim daremos à verdade da consciência responsável a possibilidade de fortalecer a consciência de uma verdade estável.
Cortejo Funerário de Rui Barbosa
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