Lima Barreto; aspectos sociais de sua obra
Nelson Mello e Souza
Destacar os aspectos sociais contidos na obra de Lima Barreto não é o mesmo que fazer a sociologia de sua literatura.
Sua obra é uma viagem pelos tempos da República Velha, pela formação do Brasil que nela se consolidou, vista sob o ponto de vista do deserdado da sorte. Examina valores aceitos como verdades e costumes legitimados como corretos. Nela podemos ver como se dividiram as classes sociais, sentindo os efeitos psicológicos do status atribuído a cada uma no jogo correlato dos papéis impostos. Do conjunto nos surgem comportamentos submissos como traço marcante de uma cultura que brotou em solo colonial dependente. Submissão das elites em relação ao estrangeiro considerado superior, pela raça, pela energia, pelo nível civilizatório; e do povo em relação às elites econômicas e políticas, como escravos, dependentes, agregados, protegidos, afilhados, serviçais, jagunços e colonos. Com Lima Barreto passamos a entender melhor nosso passado e o nosso presente. A ver o Rio antigo, sua construção como cidade. Sentir os tempos, os tipos e os vícios, as falsidades das elites e sua degradação no formalismo vazio de suas almas ressecadas.
A sociologia da literatura tem campo de ação diferente. Envolve abordagem mais precisa para se ver a obra, o autor, sua vida e seu tempo como expressões da sociedade. Justamente por isto não me inclino por ela. Seu perfil tende para o determinismo e seu racionalismo ressecado não estimula a empatia. Apaga a emoção. Tampouco responde às inquietações que dão origem polimorfa, pessoal e inesperada à produção da arte e aos desvios da vida. Afinal, nem todo mulato pobre e talentoso foi Lima Barreto; como nem todo mulato genial, nascido num morro, feio epiléptico, gago e rejeitado, foi Machado de Assis. A sociologia da literatura explica muito; não explica tudo.
Quando um escritor seleciona um tema e o persegue em sua obra o faz como parte de um processo imaginativo, estético e psicológico em que se fundem, num caldeamento subjetivo, as influências do meio é certo, da vida, é correto, dos valores que confronta em seu tempo, é verdade, mas acima de tudo representa a inflexão criativa, movida por um talento próprio, único, pessoal, que combina todos estes elementos. Não há determinismo sociológico que explique o talento. Nem o destino. Por isto, se a sociologia da literatura nos ajuda na melhor hermenêutica do texto não a esgota e até nos desorienta em seus excessos.
Não é outra a razão pela qual nos recusamos a ver o homem e a obra como expressões simétricas da sociedade. Podem até rotular Lima Barreto de “pequeno burguês”, como o faz, por exemplo, Maria Cristina Machado em obra recente. Não o vejo assim. O “pequeno burguês”, expressão consagrada pelo ativismo marxista, caracteriza-se por uma visão de mundo acomodada à ideologia aceita, visão que o faz obedecer ritualmente aos comportamentos e valores que passa a entender como certos, agindo como uma espécie de marionete, um dócil pastiche das condutas e idéias das classes superiores.
Lima Barreto não foi nada disto. Foi um rebelde solitário, um rebelde com causa, que usou a literatura para denunciar a sociedade em que lhe coube viver. Agente ativo e inconformado na luta contra as desigualdades e a submissão das classes inferiores, foi um defensor dos deserdados.
A sociologia da literatura deixa escapar aspectos estéticos, filosóficos e pessoais cuja gênese misteriosa vai compor os traços do talento artístico. O poeta e amigo Carlos Nejar nos fala das queixas de um pensador condenado aos limites da mera pedagogia. Tinha idéias, mas só mesmo no escorrer sem graça da exposição rotineira lograva trazê-las à luz. As portas da literatura criativa estavam fechadas para ele. E nos fala de outro tipo que tinha o mais perfeito domínio da linguagem, era um esteta do idioma, mas não tinha idéias. Por mais que tentasse não lograva escrever um livro muito menos poesia. A conclusão é ser o talento literário o misterioso poder de combinar idéias brilhantes com sua expressão na forma adequada. Sem a forma não se logra dar vida ao que se diz, mas sem algo para dizer, a forma é jogo estilístico vazio.
Por isto tampouco parece adequado captar Lima Barreto pela via da crítica literária tradicional, obsessivamente preocupada com formas, escolas, estilos e modelos.
Nosso outro grande poeta, ele também amigo e crítico literário de talento, Gilberto Mendonça Teles chamou de “universitarismo” a proposta analítica de um crítico embebido em teorias, obediente a esquemas, sem conhecimento efetivo do fazer poético e sem talento artístico. Eduardo Portela nos disse, em recente palestra, que deixou de ser crítico porque percebeu nesta atividade a marca do autoritarismo. A voz de comando de donos da verdade. Ela enaltece ou desmoraliza, com a força de um Júpiter moderno.
Este tipo de crítica esquece o lado humano de Lima Barreto e, luneta em punho, começa a catar aqui e ali galicismos, equívocos ortográficos, acolá erros de concordância ou desvios gramaticais. De fato há em Lima algum desleixo. Não sabemos se dele ou dos revisores. Mas há. Eu mesmo encontrei em seu Diário, frases como “ para eu ver ” ou o “porque” quando usado como indagação , escrito sem a necessária separação.
Nada disto pode ofuscar a originalidade de um estilo revolucionário, que introduz na literatura brasileira os modismos, o falar simples e desajeitado do povo mas, também o estilo límpido e poético que usa quando nos descreve o Rio, o seu Rio de Janeiro, de forma comovida, situando o leitor ante uma tela imaginária que nos lembra, pelo estilo descritivo respeitoso e lírico, o “Ângelus” de François Millet. São paisagens, tardes, manhãs, o passear das gentes, os mares, as montanhas e as ruas que o fascinam.
Vejamos como nos descreve uma cerração inesperada que baixa sobre um amanhecer na Guanabara, por sobre a tensão das tropas, nos tempos da Revolta de 93. Está em Policarpo Quaresma.
“ Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos estão alterados. Parece que do seio da bruma vão surgir demônios. ... Não é noite, não é dia; não é o diúsculo, não é o crepúsculo; é a hora da angustia, é a luz da incerteza.... “ .
E finalmente quando tudo começa a dissipar-se Lima arremata : “já se via o sol que brilhava como um disco de ouro fosco”. E mais adiante: “ as formas , as coisas saíam modeladas do seio daquela névoa pesada... iam saindo da bruma, à luz daquela manhã atrasada.”
Se isto não é talento descritivo, se não são metáforas originais, se não é a força de um escritor magnífico, confesso-lhes humildemente..., ignoro o que o seja.
Lima é um grande escritor. Escreve com a alma na ponta da sua pena. Não foge da vida, mergulha nela até as entranhas para daí retirar a culpa de todos nós pelas disparidades existentes, a culpa do acaso pelas misérias de tantos, a culpa dos deuses pelo tormento dos inocentes.
Nada tem de “pequeno burguês” muito menos de escapista romântico. Ao contrário do que nos diz Reverdy sobre a filosofia da arte, o “real” não é o seu “assassino”. É o seu criador. Por isto sua literatura pode até ser irônica, mas é acima de tudo, triste.
Lima foi um homem triste. Porque triste foi a vida que lhe coube viver, sem nenhum sentido além da literatura em que se apoiava para não despencar de todo no abismo da depressão final, apoiando, com seus parcos recursos, um pai demente e uma família dependente.
Convivendo com a loucura desde cedo, desde os 21 anos, não a entende de longe, como o fez Gericault retratando o olhar opaco da velha louca que vemos nas galerias do Louvre. Lima não era um voyaeur da loucura; era alguém que a vivia por dentro, debilitando suas carnes, destruindo sua força, modelando seu espírito. O “álcool não fazia parte dos meus hábitos” é o que nos diz no romance auto biográfico “Isaias Caminha”. Acabou sendo a forma lenta do suicídio que não teve força de buscar em vida.
No jogo dos acasos irracionais, na entretela do absurdo, Lima vai construindo sua visão de mundo. E nela encaixa a da sociedade em que vive. Sua literatura provou a verdade da velha suspeita grega sobre o nosso “Ser” como expressão do “daimon kai tiché”. Isto é, resulta do “ ajuste do eu aos imperativos do acaso”. Do “daimon” tão pessoal, tão de cada um, reagindo ante a “tiché”, os acasos genéticos, sociais, circunstanciais. Acasos de todos os tipos e formas . O “eu” que os enfrenta, o faz por todos os lados, sem plano e sem cuidado.
Lima Barreto deve o nome a uma combinação do de seu padrinho, o Conde de Afonso Celso, protetor de sua família nos tempos do Império, com o de seu pai , Henrique. Acabou lhe saindo o nome do primeiro rei de Portugal, Afonso Henrique.
Nada mais fora de lugar para aquele mestiço, nascido de um pai tipógrafo que acabou louco, após ironicamente, ter sido o administrador de uma colônia de alienados. A suprema ironia do acaso fez daquele “João ninguém” o grande escritor que trazia em si a centelha do talento. Levou-o à percepção de verdades que passou a revelar.
Compete ao escritor talentoso exibi-la a quem o lê. Ao fazê-lo recupera a humanidade soterrada pelo fluir medíocre da rotina. E a situa, pela força de seu texto, num plano que permanece entre o pathos do real e o onírico da esperança. Seu texto nos ilumina com a luz da verdade que negamos a nós mesmos. O grande autor, como Lima, como Machado, é sempre um mago da catarse , o profeta do encontro que algum dia todo homem há de ter consigo mesmo.
Há duas engrenagens que não se ajustam. A da sociedade e a do artista. Na dialética de seus conflitos dissolvem-se as ambições em rotinas grosseiras, perdem-se os sonhos em sua própria irrelevância. Lima Barreto é a explosão deste desajuste, num grito que a sociedade não quer ouvir. E por isto o sufoca. Machado, por outro lado, é a expressão de um silêncio obliquo que se esconde na ironia e por isto a sociedade o aceita. Os dois são grandes. Creio ser um deles maior que o outro, pela coragem frontal da denúncia perigosa.
Dizem que escolhemos nossos caminhos. Na verdade os caminhos nos escolhem. O menino Lima Barreto mulato sem escolha e pobre sem opção, seguramente não planejou ser poeta e escritor. Simplesmente nasceu com um talento que não devia ter, viveu como não queria viver num meio que o repelia. Poderia ter mudado algo de seu destino. Afinal Patrocínio o fez e João do Rio, negro, também o fez. Teria feito carreira com sua pena se tivesse o caráter de Numa Pompilio, personagem de Numa e a Ninfa. Ou do Genelicio de Policarpo Quaresma. Seu caráter, seus códigos éticos, não permitiram que o fizesse. “Daimon kai tiché”.
Tendo o castigo da lucidez via a tantos e tantos exibindo soberbas limitações e generosas idiotices, donos de saberes falsos e empulhações autênticas, serem reconhecidos, prosperarem, serem até glorificados. Que artesão absurdo havia tecido a roupagem de uma sociedade tão assimétrica e tão complicada em seus valores legitimados?
Sua consciência o levou à crítica social. Falou pelos muitos, pelos milhões que não logravam mais que a resignação bovina, a subserviência apática ou o comportamento dócil de quem aceita, como dádiva divina, seu pequeno espaço social .
Lima Barreto foi a voz dos deserdados, a alma do subúrbio antigo, a expressão da miséria moral que soterra a esperança dos simples e a reduz a uma resignação que se define como suicídio existencial . Mais que isto, foi um filósofo da opressão.
II
A partir deste ponto podemos resumir suas visões da sociedade sem reduzi-lo , como muitos críticos o fazem , a um produto do ressentimento. Tentaremos captar o sentido social da obra de Lima Barreto mostrando por que , afinal, nos atingiu a pleno, passou à posteridade, sobrevivendo a seus contemporâneos que já se foram, tomando o partido dos oprimidos, assumindo sua posição de raça, de classe, de vida.
Muitos são os exemplos de homens que até transcendem a própria classe para seguir o imperativo ético de sua posição não complacente com as misérias do mundo. O mais famoso deles, longe de ser o único, foi o talentoso filósofo e professor alemão, o classe média Karl Marx, que viveu sua vida e sacrificou sua família para denunciar injustiças e encontrar logicamente as suas causas, assimilando a posição de classe do operariado.
Vejo quatro centros de força que se abrem na obra de Lima Barreto para orientar a visão da sociedade brasileira à época da transição do Império para a República.
O primeiro refere-se à dialética do poder; o segundo ao problema do Estado, da burocracia; o terceiro aborda a situação da mulher e o quarto a própria situação da literatura possível numa sociedade que padece de alienação estrutural, como a nossa.
Vejamos a dialética do poder.
No Brasil da época, as classes que emergiam da monocultura ainda detinham posições estratégicas de mando. A burguesia industrial começava a tomar forma de modo canhestro, por emplastro, importando soluções como importava máquinas, tudo do estrangeiro. Os grandes latifundiários, os chamados “coronéis”, ainda não eram o passadismo. Podiam estar economicamente mortos, mas não o sabiam. A sociedade e principalmente a política os entendia como bem alertas e vivos. Eram ainda, como o diz Raimundo Faoro, os donos do poder. Para subir na vida um dos meios era galgar a escada que levava à intimidade do “coronel”, de preferência logrando entrar em sua família pelo caminho do casamento, técnica preferida.
O símbolo foi o “ Numa Pompilio”, o anti herói de Numa e a Ninfa, que supera sua mediocridade implacável e sobe como um meteoro às custas de seu sogro, o poderoso chefe rural Neves Cogominho . Lima Barreto o define como “o chefe da dinastia dos Cogominho que desde a fundação da República, desfrutava de empregos, rendas , representações tudo que aquela mansa satrapia possuía de governamental e administrativo.” O outro caminho é manejar um falso saber imposto pela via de fraudes e diplomas duvidosos, usando-se o título de “doutor” para romper as divisórias de classe e poder.
Numa sociedade sub letrada,com alto índice de analfabetismo, o saber era uma raridade. Portanto demonstrar que o possuía era uma das táticas mais usadas, tendo no diploma de “doutor” sua legitimação. Os que usavam este expediente aparecem como figuras simbólicas nos domínios da Republica dos Bruzungangas, saem das páginas de Gonzaga de Sá, bem como em contos e textos esparsos, como o “Professor de Javanês”. Agregando-se à elite, usando bem o ornamento do “doutor”, sabendo representar teatralmente uma sabedoria inexistente seria possível lograr a ascensão social . Arrivistas de todo o tipo como o Fuas Bandeira de Isaias Caminha, o lograram. Tipo de comportamento estimulado pela dialética da concentração do poder a unir dirigentes e dirigidos na mão da classe social dominante.
O jogo dos papéis sociais que dava a esta classe a consciência de sua superioridade ontológica organizava o padrão de comportamentos em torno da subserviência, do medo, do cuidado critico, para garantir a sobrevivência numa sociedade sem empregos e sem muitas alternativas. E a fazia ansiar por títulos na República, brazões no Império. Por outro lado levava a classe dirigente a preocupar-se não com o desenvolvimento do Pais, como se lamenta em Bruzundaga e forma o pano de fundo de Policarpo Quaresma, mas com leis, discursos, ornamentos, intrigas, arranjos eleitorais, conluios e uniões de família para, de um lado, pelo domínio do poder político, impedir qualquer inovação ou reforma que viesse prejudicar o equilíbrio das formas econômicas que garantiam seu status superior e de outro, impor a dominação social como forma de sustentar a ordem pelo manejo da violência.
A segunda linha de análise é o problema de como a classe dirigente trata o Estado como “cosa nostra”, usando este jogo mafioso de disputas e o controle da massa de empregos públicos. Uma pequena elite agrária numa sociedade que vivia precariamente da produção de monoculturas, controla o Estado e o trata de forma típica. O grande sociólogo Max Weber chamou este tipo de dominação de “patrimonialista”.
Lima Barreto , captando o sentido histórico de nosso “patrimonialismo” mostrou como o uso pessoal do poder e dos recursos do Estado colaborou para reforçar as posições de mando da elite dirigente. Construiu tipos e definiu ações que giram em torno do problema. Sem empregos , a conquista de uma posição na máquina do Estado e o logro de posições de prestígio e mando que permitiam mover as peças da admissão, transferências, acumulações de cargos, montepios e vantagens de todo o tipo consolidava a estratégia de dominação. O tema perpassa a obra, surge em Isaias Caminha, em Policarpo Quaresma, em Clara dos Anjos, em Numa e a Ninfa, em Gonzaga de Sá.
No pequeno conto “Três Gênios da Secretaria” faz um dos personagens dizer que “todos nós nascemos para funcionários públicos”. O pai de Clara dos Anjos, ao vir para o Rio muniu-se de uma carta de apresentação a um político poderoso. Queria ser funcionário público. A burocracia do Estado era o lócus central de todas as preocupações e os acertos partidários que levassem a seu controle compunham a agenda política de nossos dirigentes.
A burocracia incha, caminha sobre si mesmo produz tipos-padrão, que Lima Barreto traça em seus textos. A concepção de trabalho é puramente formalista e esta é a razão do desprezo por atividades produtivas como marca da cultura brasileira. A ideologia de repúdio ao trabalho duro e suado, ao exercício de uma profissão, foi o que tanto horrorizou a mãe do vigarista e vagabundo Cassi Jones , o sedutor de Clara dos Anjos. Quando soube que ele ira empregar-se como técnico a velha sofre um princípio de desmaio porque isto iria “desonrar seus ancestrais, sua familia” constituída de homens que “serviram ao Estado”.
A terceira linha de análise é a posição da mulher. Lima Barreto é um revoltado contra uma sociedade que não encontra para a mulher uma posição melhor que a decorrente do casamento. Neste tipo de sociedade Lima não vê o destino normal da mulher em sua auto afirmação profissional. Tudo colaborava, agia, pressionava e atuava para transformar o casamento num ideal de vida. Mesmo que seja o caso da inteligente Olga que se casa com um pobre diabo no livro Policarpo Quaresma. Era o padrão. Os valores são tão deformados que produzem, como resultante, a tragédia da depressão quando a mulher não logra casar-se. “Ismênia” é este exemplo no mesmo texto de Lima. Embora cultivando o noivo com práticas abjetas, como financiar seus estudos, sua alimentação, até seu guarda roupas, a família de Ismênia não logra casá-la com o pulha do “Cavalcanti”. Assim que se pilhou com o diploma na mão o novo doutor desapareceu deixando Ismênia a sucumbir em seu torpor de desprezada e solteirona. A morte de Ismênia, por depressão aguda é sintomática do desespero psicológico que envolve a quem se sente frustrada no que de mais lógico a sociedade espera dela: casar-se. Ante a situação vulnerável da mulher a ideologia da dependência consagra sua debilidade social.
Da mesma forma Clara dos Anjos sucumbe aos encantos de um tremendo vagabundo porque sua imaginação, desde criança, estava voltada para o casamento, para o encontro do príncipe encantado que iria abrir-lhe as portas da vida. Confundindo as coisas, em sua inexperiência, Clara se entrega a Cassi Jones,como outras vinte ou trinta já o haviam feito. Algumas com tragédias , filhos bastardos e suicídios. Até mulheres talentosas e enérgicas como a filha do Cogominho, Edgarda, casada com o limitado e asqueroso Numa, só o fez porque, no casamento, percebia a forma de ser socialmente respeitada.
A mulher vivia à sombra do marido. Se o marido fosse um parlamentar importante, talvez ministro, ela iria desfrutar de um status impressionante e representar o papel de grande dama. Para lograr este objetivo Edgarda somou todas as forças, até o prestigio amoroso que desfrutava da relação clandestina que mantinha com o primo. Usou o talento do amante para redigir os discursos parlamentares do marido. Fazê-lo brilhar, levá-lo a posições de destaque, a citações na imprensa. Como a lua a refletir serenamente uma luz que não nunca foi sua, a mulher na sociedade brasileira de então vivia por reflexos do marido.
Não era só do marido. A debilidade da mulher, totalmente despreparada para enfrentar as asperezas da vida, a fazia viver de modo vicário. Seu “eu” se dissolvia no projetado “outro” e dele se nutria. Fosse o poder do político ou a riqueza do empresário de quem se tornava amante, fosse no encanto boêmio de algum valentão ou vagabundo, cuja força se transferia para ela, num mecanismo freudiano complicado, fosse até no automóvel que afinal, exprime a superioridade de quem está a dirigi-lo, como no conto “Um e Outro”, a mulher vivia a amparar-se em muletas sociais.
O quarto campo que percebo nas preocupações sociais de Lima Barreto é quanto à identidade nacional. Ao preocupar-se com a situação da literatura brasileira, o tema é explorado por este ângulo. O mesmo que leva Quaresma a propor o tupi como idioma oficial e faz Gonzaga de Sá repudiar a elite “petropolitana”, inautêntica, imitadora, ele que era um “Sá, o Rio de Janeiro, com seus tamioios, seus negros, seus mulatos, seus cafuzos e seus galegos também”.
Por isto o tema da literatura é abordado de forma a escapar dos debates puramente literários. Na verdade o que preocupa Lima Barreto é a alienação de um grupo que vivia a imitar os cânones portugueses e os temas franceses. Alienação que se reflete na atitude básica de se preocupar com os outros, com os civilizados, negando sua própria identidade como brasileiros. Em tudo, não só na literatura. Nas modas que se não chegavam ao exagero da República dos Bruzundangas de vestir peles de urso e de raposa, em pleno trópico, usavam, no entanto, casacas de lã, cartolas de seda, botinas pesadas, vestidos de setim, e toda a complicada parafernália que se admitia como adequadas ao modelo parisiense. Nas construções que procuravam imitar NovaYork. A mesma alienação nos levava a ansiar por títulos de nobreza sem nunca termos feudalismo e fazia de “Juca Paranhos”, figura que nos surge em Gonzaga de Sá, na verdade o Barão do Rio Branco, personagem que Lima Barreto desprezava como exemplo do formalismo balofo. Preocupado com poses, com a opinião dos estrangeiros sobre nós, sempre tentado pelo brilho de uma glória vazia, cheia de pompa e sem circunstância, “Juca Paranhos” dele mereceu poucas e boas.
A alienação brasileira levava a todos, elites e intelectuais a preocupar-se em parecer com os “civilizados”. Destarte , nossa literatura preocupava-se com a forma e não com o conteúdo. Sua crítica a Machado, embora sob este ponto de vista seja até bem injusta, era por ser Machado um homem que , segundo Lima Barreto, escrevia para agradar os puristas, “com medo de Castilho”, a inventar tipos sem vida numa sociedade de elite, fugindo dos problemas brasileiros, negando-se a si mesmo opondo-se à autenticidade que propunha no texto denominado “Instinto da Nacionalidade”. Ao ver de Lima Barreto, Machado queria ser inglês nos modos e francês no estilo.
Podemos concluir dizendo que Lima Barreto foi bem mais que a voz dos deserdados e o escritor dos subúrbios. Foi um artista que não se ajustou ao paradoxo de um absurdo que se aceita como normal, dissolvido e disfarçado na apatia coletiva. Sua ironia sutil revelou o jogo teatral dos papéis sociais que impõem limites rígidos aos espaços que devemos percorrer em vida, ansiosos de reconhecimento social . Por isto foi um autor cuja obra desafia rótulos e cuja atividade literária não se contém nas fronteiras de qualquer classificação.