Oliveira Vianna, este Desconhecido
Chanceler Nelson Mello e Souza
Não será impreciso afirmar que a tese implícita no título decorre da visão crítica dominante no contexto intelectual que vem marcando os modernos estudos sobre a formação do Brasil. Especialmente desde o após segunda guerra mundial.
O pensamento que se firma neste meado de século consolida uma inflexão de esquerda, provocando freqüentes choques ideológicos. Todo um período de confrontos tem início, dando contornos definidos à década dos 50 e condensando-se nos anos 60. Domina o cotidiano das Universidades e estimula núcleos dinâmicos de ações contestadoras do “establishment”. No Brasil provoca reações autoritárias e no resto do Ocidente funciona como estopim de crises superpostas. Culmina nas revoltas estudantis de 68, manifestação coletiva dos jovens dos dois lados do Atlântico, em defesa da “contra cultura”. Como parte do movimento, milhares se reúnem em 69 para comemorar entre cantos, amor livre e “slogans” anti capitalistas, o “Dia da Terra”, num grande festival de utopias desatreladas.
Oliveira Vianna não podia ser bem apreciado por este tipo de visão de mundo. Sua obra nada tem de esquerda nem de acento dissidente. Pelo contrário, é forte seu tom conservador. No que se refere ao Brasil, foco exclusivo de seu pensamento, via nosso imaginário político do Império como exemplo de pragmatismo. Desde a independência, quando assumimos o comando de nosso destino, seguimos por todo o século XIX na contra mão do tumulto revolucionário europeu. Permanecemos alheios às crises sociais de 1848 e das turbulências vividas pela consolidação do capitalismo norte americano.
Oliveira Vianna nos interpretava como sociedade cuja transformação social e política havia sido conduzida, historicamente, fora do paradigma revolucionário. Sustentava ter sido nossa característica um processo gradual de ajustes, “sem derrame de sangue, sem sublevação das massas, sem lutas patentes”. Sua obra não via o desenvolvimento do Brasil tendo, como base de seu dinamismo, a luta de classes. Tese que o colocava em confronto com o pensamento de esquerda. Para ele, lutas sempre existiram em nossa história. E continuavam a existir. Mas sempre girando em torno da conquista do poder dentro da mesma classe social.
As razões lhes pareciam claras. Não lograva perceber em nossa realidade objetiva mais que uma burguesia ganglionar, de surgimento historicamente tardio. Quanto ao proletariado, a contraface sociológica necessária da evolução burguesa, teria de surgir igualmente atrasado, politicamente submisso e quantitativamente mofino. Para ele, a revolução brasileira, se assim pudesse ser considerado nosso processo transformativo, estava sendo liderada pelo Estado.
A partir destas posições sua obra o colocava à deriva do clima intelectual da época considerada mais acima. Toda época tem suas certezas. Certezas que passam a funcionar como verdades axiomáticas. Geram hábitos da mente; caracterizam a dinâmica de uma geração. Ao desafiá-las, Oliveira Vianna auto condenou-se.
Sua obra nunca foi, no entanto, um exemplo de acomodação. Mas o destinatário de sua crítica não foi o mundo político e sim o intelectual. Oliveira Vianna partiu de uma crítica aos interpretes da cultura brasileira seus contemporâneos. Não aceitava que uma realidade complexa e sui generis, como a brasileira, pudesse ser bem entendida valendo-se o interprete, para tanto, não de pesquisas originais e de fatos estudados, mas do apoio de nomes consagrados, citados com desvelo, tratando suas obras com respeito reverencial e submissão dogmática.
Não nos parece que a posição, em defesa da objetividade científica, dirigia-se aos defensores do marxismo. Mesmo porque em fins dos anos 10, inicio do após primeira guerra, os marxistas eram pouco numerosos, não dominavam nossa inteligência, sendo ainda irrelevantes no Brasil. O mais indicado, até mesmo por lá estar metido em suas obras, era aceitar que Oliveira Vianna dirigia seu combate ao evolucionismo de perfil positivista e darwinista. Para ele as teorias de Comte e o darwinismo social de Spencer influíam, de modo nítido, na orientação de nossos pensadores. O confronto com o marxismo estava distante de sua perspectiva quando formulou suas teses principais. Chega até a admitir que a sociologia só seria ciência seguindo o trajeto teórico proposto pelos estudos sociais iniciados por Le Play. Não menciona a obra de Marx nenhuma vez, mas refere-se com enorme respeito, à modelistica norte-americana. Escapar da biblioteca e mergulhar na realidade era o que se fazia na tendência monográfica que começava a ganhar corpo nos EEUU. E era o método de trabalho por ele defendido para as ciências sociais.
Felizmente para todos, esta linha fragmentadora do contexto, defendida por ele, não foi a que adotou. Ao nos oferecer sua análise da realidade brasileira sempre norteou-se pela busca de nossa verdade cultural, chegando às grandes sínteses interpretativas da vida coletiva e seus valores. Sem esta abordagem não teria sido um grande autor. Nada teria construído a não ser um estranho caleidoscópio onde fatos desconexos não permitiriam aos leitores se posicionar ante um todo integrado. O desmembramento do corpo social como método para o logro de significações viáveis abre espaços à perplexidade.
Lamentamos apenas que Oliveira Vianna não tenha sustentado, na aplicação de seu método indutivo e sintético, a luta consistente contra o dogmatismo. A consistência não parece haver sido o seu forte. Sua rejeição às teorias estrangeiras, formuladas sem levar em conta o contexto brasileiro, foi seguida de modo ambivalente. O fato prejudicou sua aceitação até mesmo pelos que se dispunham a estudar sua contribuição de modo ideologicamente neutro. Afinal, se o importante era a nossa verdade e esta verdade teríamos de buscá-la em nós mesmos, descobrindo-a no estudo objetivo de nossa história, o “racismo” deveria ser equacionado a partir desta premissa. Não havia por que, numa era em que a ciência antropológica avançava, demolindo a tese do diferencial intelectual e criativo das raças, principalmente a visão decorrente das psicologias diferenciais, fosse esta posição teórica entendida por ele como verdade axiomática. A ponto de defender, como exemplo do mais puro “arianismo”, a energia do desbravador paulista.
A história, especialmente a formulada por Taunay, mais adiante por Capistrano de Abreu e Sergio Buarque de Holanda, nos revelou que os homens das monções eram os mamelucos que aqui foram surgindo desde os primeiros tempos. Descendiam dos vários “João Ramalho” que chegaram a estas terras difíceis como náufragos, degredados ou simples aventureiros. Mais adiante nas levas dos primeiros colonos. Europeus que passaram a se acasalar com as nativas. Seus filhos mestiços colaboraram com o poder colonial para a consolidação da ordem numa região carente dela. As “bandeiras” no rumo do interior desconhecido, foi o resultado do esforço audacioso destes primeiros conhecedores dos idiomas aqui falados, das trilhas a serem melhor percorridas e do ambiente tropical que atormentava o recém chegado. Nada tinham de “arianos”.
II
Em 1913, véspera da 1ª. Guerra Mundial, Oliveira Vianna entrava nos 30 anos de idade. Neste período da vida, acelerou seu ritmo de estudos. Ao fim da guerra, em 1918, já se considerava um intelectual moderno, dedicando-se a atualizar o pensamento brasileiro. Para melhor cumprir esta tarefa passou a demolir, como inepto, o determinismo evolucionista até então dominante neste pensamento. Foram sobre esta tarefa de atualização as primeiras páginas do seu “Evolução do Povo Brasileiro”, escrito neste período e publicado nos anos de 1920.
Não obstante, ao manter a perspectiva racial, não se mostrou tão moderno assim. Sucumbiu ao mesmo tipo de pensamento que denunciava como desatualizado. A tese racista era tão antiga, aceita e profunda entre nós que recuava no tempo bem mais até que o evolucionismo comtiano. Dominara o pensamento do brasileiro e atingira o estatuto de um dogma. Tanto que Euclides da Cunha, tão elogiado pelas gerações posteriores, defendia estas posições como verdades evidentes por si mesmas. Silvio Romero, igualmente respeitado como intelectual, desfechou contra Manoel Bomfim 25 artigos irados em defesa da psicologia diferencial das raças. O grande poeta Bilac nela se baseou para escrever seu soneto sobre as três raças tristes, posição que também Paulo Prado consagrou no seu “Retrato do Brasil”. Até no moderno e cientifico Gilberto Freyre nos é possível notar pequenos deslizes racistas como as qualificações de “sangue nobre” e de “sangue infiel” que transitam no texto de Casa Grande e Senzala.
Desde a colônia, a idéia ganhara evidência de verdade científica. Tornou-se dominante, penetrando até mesmo nossa psicologia popular, onde os mestiços que a aceitavam docilmente, eram majoritários.
No período de consolidação intelectual de Oliveira Vianna, os anos 10 , a visão e entendimento cientifico do diferencial criativo das raças seguiam ainda os ensinamentos de Arthur de Gobineau. Gobineau, aristocrata francês, fora embaixador no Brasil no II Império, amigo e confidente de Pedro II. Escreveu um clássico da literatura sociológica, o “Desigualdades das Raças Humanas”, livro que inspirou pouco adiante a obra de Houston Stewart Chamberlain, um dos mestres do nazismo, embora sendo inglês. Na mesma linha de Gobineau eram lidos e apreciados os textos de autores racistas particularmente respeitados como Lapouge , Le Bon e Gumplowicz. Todos defendiam a mesma tese do diferencial psicológico e criativo das raças. No Brasil de Oliveira Vianna a posição teórica era aceita sem restrições, referendando com a força da ciência, o sentimento secular de desprezo e completa indiferença pela sorte do índio e principalmente do negro. Afinal, era uma tese que se ajustava muito bem aos princípios legitimadores de uma sociedade preadora de índios e escravizadora dos negros.
Oliveira Vianna, bem mais adiante, ainda fez um esforço para reconsiderar suas posições nos anos 40. Tentou justificar sua revisão no livro sobre as “Instituições Políticas Brasileiras”. Nele afirma: “separo-me dos antropo-sociologistas alemães e franceses... que explicam a civilização pela raça- o que é um erro, o erro de todo monocausalismo”.
Não foi convincente. Nem levado a sério em sua conversão. O que parece haver recusado, na verdade, foi o “monocausalismo”. Seguiu em suas obras sem ser explícito sobre o problema de base, o de haver um diferencial cientificamente comprovado no potencial criativo das raças. Ao que tudo indica, este ponto não foi por ele contestado. Oliveira Vianna continuou a aceitá-lo como base de seu “arianismo”, entendendo-o como fator de influência.
Junto a outros fatores, o elemento racial, para ele, contribuía , em dinâmica entreleçada, para a formação dos povos e os avanços da civilização. Mesmo nesta obra tardia continua afirmando que, sob o ponto de vista dos sistemas políticos, só a “humanidade ariana desde o neolítico conhece a democracia”.
Em seu ultimo trabalho, sobre a formação social do capitalismo brasileiro, já com suas reflexões bastante amadurecidas, insiste na tipologia social do capitalista que representa “três tipos de temperamento e de inteligência... que não são culturais e sim biológicos” de tal modo que certas “afinidades psicológicas” ajustam-se melhor que outras ao estilo do homem de empresa. ( o destaque é meu )
Era tão firme sua posição a respeito que mesmo ante evidências expostas no dramático diferencial de tipos e etnias que compunham a herança dos portugueses, anotadas por ele mesmo e exemplificadas pela mistura de celtas, godos, romanos, gregos, fenícios, semitas, normandos, borguinhões, como formadores do tipo étnico português, insistia na tipologia única. Mais complicado ainda foi listar os aborigenes da região. Suas diversas etnias foram cuidadosamente enumeradas e até reproduzidas por Oliveira Vianna em gravuras para exibir as diferenças. O mesmo foi feito quanto aos negros que nos chegavam pelos veleiros do tráfico, mais diferenciados ainda. Todo este conjunto de diferenças esta registrado no seu “A Evolução do Povo Brasileiro”. Não obstante, insiste em sermos a resultante étnica de “três raças”. Simplifica o imenso diferencial existente em termos de cor da pele, somente a cor da pele, já que os outros traços apresentavam desigualdades evidentes. Três raças apenas, os “brancos, os negros e os indígenas”. Ao conceituar deste modo o imenso diferencial étnico constatado, reduz o desigual concreto a um igual abstrato. No fundo, adota a posição dos apologetas da simplificação esquemática, organizada para louvar o predomínio do tipo ariano, louro dolicocéfalo nas conquistas da civilização. Esta evidente obsessão pelo “arianismo” ele nunca a perdeu.
É viável, portanto, concluir que sua posição ante o fenômeno das “raças” pode haver sido atenuada nos trabalhos dos anos 40, mas não foi abandonada, muito menos explicitamente rejeitada.
Não obstante , desperta curiosidade ver o tratamento diferencial dado pela crítica. O fenômeno começa a ser tornar evidente a partir dos anos 50 quando Oliveira Vianna já nem podia mais defender-se, pois desaparecera em 51. Os críticos passaram a tratar autores que se assemelhavam em suas posições, ditas “científicas”, na avaliação do potencial diferenciado das raças, de modo desigual. No caso de Oliveira Vianna não se procedeu a nenhuma redução sociológica de época. Não houve um mínimo de esforço compreensivo. Mais evidente ainda foi a apoteótica aceitação da obra de Gilberto Freyre que também nos fala em “brancos, negros e indios”, além do já referido “sangue nobre”. Algo deve explicar este tratamento diferenciado que os anos 50 e 60 inauguraram no que se refere à crítica de Oliveira Vianna. Parece que, por alguma razão metafísica, somente em sua obra o racismo assumiu conotações e ressonâncias quase demoníacas. Todos sustentavam o mesmo em relação às raças, todos se achavam “modernos” e “científicos” ao sustentá-lo, mas só Oliveira Vianna foi condenado como “racista” e retrógrado.
Para sermos corretos na avaliação do período brasileiro em que Oliveira Vianna começou a refinar seu pensamento, os anos 10, de “moderno” pouco se via nele. E menos ainda na inteligência brasileira. Tratava-se de uma pretensão sem base real. Éramos culturalmente indigentes, fenômeno evidenciado por nossa clara defasagem em relação aos avanços do pensamento científico e filosófico no mundo. Seguíamos imitadores e imitadores do que já não se considerava válido. No que se refere à arte e à literatura o período ainda tentava ajustar-se de modo mais realista aos tempos, correr atrás das novidades, sendo o “modernismo” que acabou chegando com a exposição de Anita Malfatti e a agitação de Oswald de Andrade , um movimento de ruptura estimulado pelo desejo de nos aproximar do que de mais atual se fazia e produzia na “civilização”. Atitude mimética que acabou sendo alterada com o tempo, na década seguinte. A partir da negação da simetria mimética, tentou-se uma inflexão teórica autêntica, tanto na musica quanto na literatura e nas artes plásticas, defendendo-se modos, formas e temas brasileiros.
Quanto à ciência social, no entanto, não se via nem isto e sim evidências de estarmos bem longe disto. Nossos intelectuais ainda privilegiavam a obra de Comte, que continuava a ser uma espécie de “nosso guia”, Spencer e seu darwinismo social, Taine, Vidal de La Blache, Le Play, Buckle, Renan, Gobineau, Haeckel, Ratzel, autores do século XIX. Tudo envolvido pela predominância de linhas deterministas. Justificava-se, portanto, com as devidas ressalvas, a postura crítica de Oliveira Vianna contra a ciência social de seu tempo. Alguns outros nomes surgiam aqui e ali para abrilhantar citações. Era algum italiano pouco conhecido e um ou outro filósofo alemão do século XIX, além da grande novidade de se citar, nos debates da rua do Ouvidor, um pobre Nietzsche cuja complexa filosofia vinha reduzida pela inteligência brasileira, ao “eterno retorno” e à “vontade de poder”.
O Brasil, a despeito de todas as facilidades de acompanhamento dos tempos, seguia estranho e alheio às inovações filosóficas, administrativas e psicológicas que surgiam em resposta à aceleração industrial do Ocidente. Acima de tudo distante do que se realizava nas ciências sociais.
Aparentemente a época ainda desconhecia os trabalhos de antropólogos do próprio século XIX, como Maine, Morgan, Franz Boas, apresentado aos brasileiros apenas nos anos 30, por Gilberto Freyre, Edward Tylor, o proponente não só do termo “cultura”, a ser usado na acepção antropológica, senão também da importância cultural das conexões históricas. Não se vê referências a nenhum deles. Ignorava os avanços da sociologia da escola de Émile Durkheim, os trabalhos pioneiros de Lorenz Von Stein, os de Georg Simmel , de Giddings. Não parece haver lido sequer a história da sociologia tal como restrita por Albion Small, a seu desenvolvimento de Spencer a Ratzenhofer. Desconhecia as polêmicas do importante filósofo da cultura Wilhelm Dilthey sobre a importância de um método próprio para a abordagem do fenômeno social, de Bouglé sobre a essência da sociologia, bem como a contribuição do idealismo de Henry Bérgson. Mais importante que tudo, não demonstrava conhecer as sutilezas filosóficas da obra de Karl Marx.
O atraso brasileiro era alarmante nestes anos 10 e 20, embora normal num pais sem universidade, sem estímulo para produção intelectual própria. O uso do conceito de cultura continuou sujeito a sérias ambivalências até bem avançado os anos 30, quando a preferência ainda era pelo termo “civilização”. Consultando as boas obras deste período mais avançado ainda vamos ver que falava-se em “civilização brasileira”, não em “cultura brasileira”. Continuavam a ignorar a diferença fundamental entre os dois conceitos, explícito no fato de toda civilização ser uma cultura mas nem toda cultura atingir o estagio de uma civilização.
Por tudo isto, considerar diferente e sujeito a críticas o que era comum e merecedor de louvores, nos parece posicionamento restritivo da intelectualidade do após segunda guerra em relação à obra de Oliveira Vianna.
O fato deve ser equacionado em perspectiva ideológica. A ideologia é fenômeno formador das mentes. Decisivo divisor de águas, orientador de premissas. Os desacordos ideológicos, geram emoções complicadas, vaidades ofendidas, jogo de interesses e rancores nem sempre inocentes. Nada se faz, no campo da análise social, sem que gere conseqüências para o nome e a respeitabilidade intelectual de cada um.
No fundo, nossas obsessões são nossos deuses. O “daimon” socrático. E todos os deuses exigem oferendas. Oliveira Vianna desenvolveu sua curiosa teoria das raças como oferenda aos deuses da ciência que cultivava. Não o fez sozinho, como o vimos. Mas a conseqüência foi penosa. Acabou gerando uma atitude de descaso em relação à sua obra. Pouco a pouco Oliveira Vianna tornou-se um ilustre desconhecido na esfera universitária.
Por tudo isto parece razoável propor uma síntese do seu pensamento sobre o Brasil mostrando haver sido ele, na verdade, um dos pioneiros no desenvolvimento da perspectiva sócio antropológica de nossa formação como povo. Abstraído o fenômeno “raça”, sua ênfase nos valores, costumes, práticas de trabalho e de vida, além da fecunda análise de modelos institucionais transplantados situaram a compreensão do processo formativo da cultura brasileira num patamar diferenciado em relação à tendência interpretativa do período.
III
Devido à inegável originalidade de suas teses no Brasil dos anos 10 e 20 admitimos que o julgamento unilateral da posteridade deveu-se a pelo menos três fatores que influíram para a relativa negação de sua importância como sociólogo. O já referido ideário racista, sem dúvida. Este foi talvez o principal, mas não se pode negligenciar o fato de Oliveira Vianna haver se colocado em linha de colisão com as teses do marxismo simplificado que dominava nossas universidades no após segunda guerra, além de sua mal compreendida defesa do Estado centralizado e forte.
A combinação dos três levou ao menosprezo de sua obra como cientificamente pouco relevante. Conseqüentemente, o após guerra veio a inclinar-se para aceitar a proposta de Antonio Candido, resumida por Carlos Guilherme Mota em “Ideologia da Cultura Brasileira”: a de ser na década dos trinta que surgiu a vertente sociológica nos estudos sobre a formação do Brasil.
Para esta forma de ver tudo começa com a obra pioneira de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr e Sergio Buarque de Holanda. O que se produziu antes foi negligenciado. Como Oliveira Vianna, pertencia a um passado considerado cientificamente inepto para o conhecimento do Brasil, sua obra não podia ser considerada.
As gerações que foram surgindo legitimaram a posição teórica. O fenômeno não ficou restrito à intelectualidade formada pela USP. Também no Rio de Janeiro o chamado “Grupo de Itatiaia” não entendia de outra forma o inicio da preocupação sociológica com a formação do Brasil.
Fixar o inicio das reflexões sistemáticas nos anos 30, anos em que o grande confronto ideológico mundial vinha atingindo proporções de tragédia coletiva, pode ser politicamente correto mas é historicamente impreciso. No fundo era a vitória da ideologia sobre a ciência. Se não se logra desenhar o mapa do mundo sem nele colocar a ilha da utopia a época parecia validar esta poderosa antevisão de Oscar Wilde.
O estimulo à reflexões sobre o Brasil veio a reboque dos choques políticos dos anos 50 que Oliveira Vianna não presenciou já que desaparecera, como o notamos, em 51.
Das convicções sobre o que seria ou não moderno ou cientifico firmou-se a certeza de que nelas não seria possível acomodar a obra de um pensador que não se ajustava à metodologia cientifica aprovada.
Oliveira Vianna não pode merecer este tipo de reprovação. Procurou em seu trabalho ser claro no uso das fontes embora sem a precisão que caracterizou a produção cientifica dos novos tempos. Se este foi o critério para fixar nos anos 30 o inicio da inclinação sociológica para estudar o Brasil temos de rejeitá-lo como expressão de um formalismo inaceitável.
No fundo este corte no tempo não representava a nossa verdade e sim expressão da consciência ideológica acima referida.
O que a história de nosso pensamento registra é ser o perfil sociológico para a compreensão do Brasil inflexão intelectual que pode ser vista desde fins do século XIX. Neste período, com a chamada geração dos 70, liderada por Tobias Barreto e sua virtual “Escola do Recife” torna-se visível uma preocupação de rompimento com a tradição idealista do romantismo literário.
A geração seguinte, a qual, de certa forma pertence Oliveira Vianna, nascido em 83, já traz com ela, no embalo do cientificismo do século XIX, as feições de um contexto em que a Era da Industria surgia como realidade perturbadora. Industria é resultado da tecnologia e esta da ciência aplicada. O mundo vivia a mudança de um paradigma agrário para outro de perfil industrial. As monarquias perdiam seu carisma e sua respeitabilidade secular. A guerra de 14-18, fenômeno que na verdade fecha o século XIX, decreta o fim de três Casas Reais históricas, a dos Hohenzolern, dos Habsburgos e dos Romanoff. A revolução das artes se acelera, com profundas repercussões no Brasil. O socialismo, que desde os anos 70, pelo menos na Europa já vinha avançando bastante, finalmente chega ao poder na Rússia, formando o primeiro Estado socialista em 1917. Altera-se o papel da mulher e até a higiene pessoal sofre profundas alterações passando-se a questionar como dramaticamente inadequado o comportamento que adotava o costume de dois banhos por ano , tal como descrito por Pierre Bouchardon no seu trabalho “Souvenirs”. Por outro lado, pode-se dizer que desde o fim do século obras de saneamento e melhoria urbana tornam-se comuns. Os tempos já haviam decretado o fim da escuridão urbana. A iluminação a gaz, posteriormente a elétrica, trazem para as cidades a efusão da luz. Era a grande revolução da modernidade. Nada lhe escapa. Artes, costumes, modas em atropelo, formas contestadoras de pensamento e ação.
No Brasil houve repercussões claras, o que levou a intelectualidade de ponta a ler e reproduzir autores deste século de ebulições. Mesmo defasados significavam um avanço, ante nossas condições. No fundo, desde fins do século XIX é possível notar um corte epistemológico pela preferência e valorização do pensamento que se considerava “científico”.
Por outro lado algo novo surgia pouco a pouco. Colocou-se, como objeto de reflexão, a questão da identidade nacional através de posturas que deixavam bem longe o romantismo vazio de um índio abstrato como matriz de nossa especificidade como povo. Não era mais considerado “cientifico” insistir nesta tese consagrada pelo Império. Na mesma linha iniciou-se um debate questionando-se o consagrado mimetismo em relação à Europa, o que tornava problemático, segundo Silvio Romero, falarmos de uma literatura “brasileira”. Era o chamado “parisismo”, imitação de francês, como o denomina este crítico mal humorado. Avolumam-se as denúncias sobre o caráter falso que se embutia no processo de transplante das idéias, gostos , comportamentos, modos de pensar e escrever, até de instituições européias. Gilberto Amado dá inúmeros exemplos desta falsidade e Brito Broca em seu estudo sobre a formação de nosso imaginário, dedica todo um capitulo ao “parisismo” entendido como disposição ontológica de nosso ser social.
Pode-se, portanto, prestar melhor reverência à verdade dos fatos se considerarmos haver sido com esta geração “fin de siécle” e não nos anos 30, que se deu o inicio da meditação preocupada com o processo de formação do Brasil e sua cultura.
Tanto parece correta esta hipótese de trabalho que um de seus mais conhecidos representantes é percebido pelo Brasil de hoje, cerca de um século depois do seu desaparecimento, como o mais influente e importante escritor brasileiro. Referimo-nos a Euclides da Cunha. “Os Sertões” foi assim considerado em pesquisa recente, proposta por uma revista de grande circulação. A razão apontada para a preferência foi a de haver Euclides inaugurado uma nova forma de ver o Brasil como sociedade dual, olhando para as formações culturais e autênticas de nosso sertão. Comparou-as com a crosta civilizada do litoral. Esta crosta conteria algo de falso, que pouco tinha a ver com as condições reais do Brasil. Ela nos chegava “emalada, a bordo de transatlânticos”, no dizer do próprio Euclides. Era inautêntica em relação à nossa verdade sociológica.
Tratava-se de uma forma de pensar o Brasil cuja característica era a busca da identidade básica de nosso povo. Silvio Romero, especialmente no primeiro volume de sua História da Literatura Brasileira, escrito na década dos 90, como também em seu “Brasil Social” e nos seus “Cantos e Contos” parte em sua procura. Não se pode descuidar dos esforços de pesquisa do nosso folklore com Celso de Magalhães, além de Simões Lopes Neto e Afonso Arinos. O primeiro tentou fixar o perfil psico social do gaúcho e Afonso Arinos, reunindo seus contos regionalistas em “Pelo Sertão” tentou revelar a alma deste Brasil profundo, ignorada pelos habitantes urbanos do litoral. Tudo na linha de uma pesquisa de fatos, falas, costumes, formas de ser e de pensar que caracterizavam o Brasil autêntico. Divulga-se o estudo das formas de vida das classes de menor renda bem como dos tipos e costumes do norte e do nordeste com a obra pioneira de nossos realistas e de nossos regionalistas, Aloísio de Azevedo, Inglês de Souza e Franklin Távora, entre outros. Buscava-se , com afinco e obstinação, traçar para o talento artístico e cientifico , o objetivo de entender a nossa realidade, como o texto de Machado de Assis sobre o espírito de nacionalidade o indica.
No mesmo ano de “Os Sertões”, também em 1902, estréia Graça Aranha com o estudo da realidade de descaso de uma terra que poderia ser “Canaã” e acabava sendo apenas uma versão da pobreza real de um povo esquecido.
Em 1905 é publicada a versão sociológica desta tendência literária. Surge com Manoel Bomfim em seu estudo sobre a formação colonial da América pelo poder peninsular. Foi pioneiro do processo formativo de nossas sociedades. Denominou-o “América Latina, Males de Origem”. Nesta obra são analisadas, pela primeira vez, as conseqüências do processo de formação de nossas sociedades dentro do modelo mercantilista imposto pelo colonizador ibérico. Com o “Brasil Nação” o autor dá melhor acabamento a sua proposta de um País destorcido pelas imposições objetivas do processo que o fez como é. Na obra de Alberto Torres esta forma de abordagem histórica, cuja orientação sociológica é a dominante, tem seguimento importante. Especialmente no “O Problema Nacional Brasileiro”. Nesta obra já são plenamente visíveis as linhas de um pensar sociologicamente orientado com vistas a uma análise da formação brasileira.
Não pretendemos ser exaustivos. Apenas indicar que fixar nos anos 30 o inicio da interpretação do processo formador do Brasil carece de base objetiva. Parece fora de sintonia com a realidade histórica.
IV
Tendo em Alberto Torres seu mestre e em Silvio Romero, seu exemplo metodológico, Oliveira Vianna deu concreção mais objetiva a todo este esforço inicial, produzindo uma obra extensa. Começou em fins dos anos 10. Em 1918 inicia o “Populações Meridionais” e “O Idealismo na Constituição”, publicados em 20. Segue pelos anos 20 adentro com “Evolução do Povo Brasileiro” e “Ocaso do Império”. Depois do interregno político em que se envolve nos assuntos relativos ao preparo da legislação trabalhista de Vargas retoma a linha de suas publicações com “ Fundamentos Sociais do Estado”, “Instituições Políticas Brasileiras” e seu quase esquecido estudo sobre a formação do capitalismo brasileiro, “História Social da Economia Capitalista no Brasil”, obra que só veio a ser publicada postumamente e quase 40 anos depois de escrita.
Seu princípio guia foi a analise do problema das instituições políticas de modo a buscar sua melhor adequação a uma sociedade como a brasileira. Por isto foi acusado de defensor do governo forte, do autoritarismo em política.
A postura teórica de Oliveira Vianna refletia sua visão do processo de formação do Brasil .
Seu suposto autoritarismo decorre da má leitura de seu texto. Sendo um defensor da democracia como a meta política mais adequada para todos os povos, origem da vida social desde as aldeias tribais do passado, sua posição quanto à realidade brasileira foi inteiramente destorcida.
O critico Wanderley Guilherme dos Santos e o filósofo Antonio Paim ressaltam este aspecto. Concordam em denominar o “autoritarismo” de Oliveira Vianna de “instrumental”. Analisaram o tema no contexto da obra, não a partir de trechos isolados. Assim procedendo esclareceram suas teses sobre um governo “forte” e centralizado. Ao ver de ambos elas decorriam da forma como Oliveira Vianna entendia a formação da sociedade brasileira. A partir dela considerava necessário um interregno político centralizador para darmos o salto de rompimento na direção de uma sociedade urbano industrial. As táticas adequadas a um governo modernizante pareciam aconselháveis para garantir o poder de coesão capaz de organizar as forças econômicas e políticas de modo a superar, tanto o atraso material do Brasil quanto o de nossa consciência coletiva.
Segundo Oliveira Vianna, especialmente no seu “O Ocaso do Império”, a herança social que trazíamos do passado Imperial e escravocrata transformava as massas, “incultas na sua quase totalidade e dispersas nas matas” em fator inócuo como “centros de idealidade política”. Não lhes era possível admirar o valor da democracia, nem compreendê-la, elas que sempre haviam vivido sob o jugo autocrático dos poderosos locais. “Era natural, pois que as formas democráticas e republicanas de governo estivessem fora de sua idealidade e do seu entusiasmo”.
No seu “Fundamentos Sociais do Estado” procurou destacar a influência deformadora das condições do povo sobre a execução das Cartas políticas, cartas que nos chegavam de modo artificial , por imitação e empréstimo de idéias estrangeiras. Éramos um povo sem a experiência de auto governo, sem consciência burguesa. Seu modo de nos ver sublinhava a vida de acordo a nossas tradições, costumes, modos e visões de mundo próprias de nossa formação. Por isto nos diz em “Instituições Políticas Brasileiras” que “nenhuma das inovações liberais ou ditas liberais tiveram aqui êxito real”. Aceitando o ornamentalismo de nossas instituições como a verdade real, tudo o que fazíamos era nos auto enganar. Nossa democracia, especialmente a do Império e da Primeira República, era nada mais que forma vazia, adotada retoricamente. A formação do poder no Brasil tivera origem clânica, porque clânica fora nossa formação social. Usava-se um poder de perfil caudilhesco, concentrado na vontade, na dinâmica e nos interesses da elite dominante.
É quase óbvio que o autor destas teses não podia ser um defensor do autoritarismo e sim um realista que admitia a importância estratégica de um interregno autoritário. É possível concordar ou não com a tese, mas não é adequado deformar seu pensamento.
Oliveira Vianna repudiava o traço iluminista de um idealismo insensato. Ele o deixa patente no seu trabalho sobre o tema, o Idealismo na Constituição. Desta forma, para que fizesse algum sentido em termos de nossa herança, hábitos e costumes um governo centralizador, capaz de usar como indução de investimentos os recursos do Estado, com poderes para conter a voracidade dos grupos políticos envolvidos na luta partidária, seria a fórmula mais adequada para se conduzir a modernização do Pais.
Bem sabemos, pelo menos desde as propostas de Merleau Ponty, que as percepções vêm carregadas de sentimentos a priori. E a evidência deste sentir não está fundada em nenhum testemunho neutro da consciência. É ideológica, portanto carregada do sentido que lhe damos. Os conceitos com os quais trabalhamos para ordenar a captação deste sentido sintetizam redes de conexões subjetivas cuja origem é difícil de precisar. Giramos em torno de nós mesmos e nossa forma de ler está presa a preferências de maneira demasiado estreita para nos permitir avaliar suas fontes de deformação. Não pretendo realizar aqui este trabalho. Apenas chamar a atenção para o problema. Porque ele me parece bastante nítido na avaliação predominante sobre o valor da obra de Oliveira Vianna.
V
Os pontos a notar e que me parecem justificar sua importância como um pioneiro nos estudos da formação brasileira podem ser resumidos da seguinte maneira :
a- Oliveira Vianna denunciou a tendência à imitação, o “parisismo” que via surgir em nosso comportamento social como síndrome do complexo de inferioridade do brasileiro em relação ao europeu, especialmente o inglês e o francês. Mais recentemente, a partir da república na virada do século, incorporamos o modelo norte americano. Dele surgiu nossa Constituição de 91. Sublinhar o “complexo de inferioridade” é contribuição importante para entender nosso comportamento ante nós mesmos e os outros. Sendo um dado de nossa cultura o havê-lo ressaltado pode ser visto como válido.
Não se pode entender a “imitação”, atitude de corrente deste complexo, como perversa em si mesmo. Oliveira Vianna não o faz. As contribuições de Gabriel Tarde, que pareciam familiares a ele, sublinham o valor da imitação, entre outras coisas como base sustentadora do processo de “difusão cultural”. Desta forma a imitação seria não só prática universal senão também decisiva para a vida das culturas. Os inventos e descobertas , desde o caso da roda e do uso do fogo, propagaram-se graças a esta inclinação humana para imitar o que lhe parece útil, belo e bom. A imitação é também forma importante de se ordenar comportamentos, dando –se coesão à sociedade e previsibilidade às ações e reações, ponto forte da obra de Tarde.
Ela é, no entanto, perigosamente deformante quando um povo inteiro se dispõe a transplantar de modo a-critico, modos , modas, processos e formas de ser que não se ajustam à sua história, a sua realidade climática e social , a seus costumes, crenças coletivas e instituições sociais. Neste caso a imitação é alienante. Não traz em seu bojo elementos de praticidade e avanço e sim caricaturas de forma, gosto, modas, como as rendas, saias, pufes, mangas compridas, setins e veludos pesados de nossas damas ao tempo da infância de Oliveira Vianna, dos fraques pretos, casacas, cartolas , luvas e polainas de lã que nossos elegantes usavam no calor carioca de 40 graus. Não seria este o vestuário adequado aos trópicos. Foi esta imitação que condenou. Resultava de uma atitude aceita por todos, a de nosso apequenamento ante os europeus. Não seria afirmação de identidade e sim do complexo de inferioridade.
Nesta linha afasta-se do dito de Joaquim Nabuco sobre estar a civilização “do outro lado do Atlântico”. Para Oliveira Vianna o que havíamos construído era válido, autêntico, mas teria de ser plenamente adaptado à nossas circunstâncias. Por isto criticou Rui Barbosa. Para ele Rui era um preocupado em seguir modelos estrangeiros, tinha em sua imensa biblioteca poucos textos sobre o Brasil , copiava leis e constituições que não se ajustavam a nossa realidade enquanto Alberto Torres, sem a retórica retumbante de Rui, sem o brilho de sua inteligência, voltava-se para o estudo de nossa realidade e dela tirava suas conclusões.
O que chamou de complexo de inferioridade nos levou “a ser um povo de transplantações”. A transplantação mimética teria causado o formalismo adaptativo já que as soluções transplantadas não se ajustavam a nossas particularidades especificas. Tudo se fazia para uso externo, falsidade aceita como verdade. No fundo, para uso interno,as coisas se arranjavam de outra forma. O dito que surgiu ao tempo da Regência, o “para inglês ver”, continha a autenticidade das ações plasmadas em nossa precária possibilidade de realizá-las de acordo com a lei escrita. Tudo acabava sendo feito, mas a nosso modo, mantendo-se a aparência da qual não podíamos abrir mão. Sob pena de não “sermos civilizados” aos olhos estrangeiros;
b – rejeitou como pouco relevante para entendermos a formação do Brasil a dinâmica da luta de classes. Seu perfil de análise da realidade histórica do Brasil inclinava-se bem mais para o modelo proposto por Pareto, autor que alias não conhecia e por isto não cita nem uma vez. Vilfredo Pareto, como Gaetano Mosca, foram seus contemporâneos. Viam na história um cemitério de aristocracias e a luta política, ou como um conflito entre as antigas realezas, ou como a dinâmica do poder que se exercia dentro da classe aristocrática. Para os dois italianos a luta de classes tivera papel praticamente nulo no desenvolvimento histórico da humanidade, sendo o carisma das elites e o jogo de seus interesses o elemento que dinamizava ações e reações. Um tipo de luta inexistente por milênios não era nem poderia haver sido o centro dinâmico da história. O modelo que Oliveira Vianna propunha era similar. Percebia nossa dinâmica política, desde a colônia, como bem mais ajustada à compreensão dos processos de conflitos “intra classes” que das lutas “entre classes”.
Para ele como os engenhos se formaram, desde logo, como sociedades complexas, permanecendo ilhados uns dos outros, constituíam centros autônomos de poder. Dentro deste centro a disponibilidade existencial da massa sempre foi alarmante. A busca de proteção e trabalho colocava esta massa em posição de total subserviência. Jamais de contestação. Foi uma característica básica de nossa organização colonial. Entrou pelo Império adentro. Perdurou praticamente até o fim do século XIX, seguindo pouco adiante com as fazendas de café da Primeira República.
Desde o inicio os poderosos usaram esta disponibilidade para criarem exércitos particulares de cabras, jagunços, colonos, dependentes, dentro de um complexo de perfil feudal, abrindo entre eles e a massa servil, uma “distância social” imensa. O conceito de “distância social” vinha sendo desenvolvido pela sociologia contemporânea de Mc Iver, Park e Bogardus. Não era conhecido de Oliveira Vianna, mas foi usado, sem o nome, de modo intuitivo, para definir o tipo de relacionamento que caracterizava nossa realidade social. A obediência e o servilismo foram legitimados pelos costumes, fazendo com que as lealdades se tornassem compactas em torno do Senhor das Terras . Nas disputas pelo poder público local , nas vendetas familiares por honra ofendida ou nas disputas de terras por fronteiras mal traçadas estes senhores do Mando lutavam entre si até a morte, criando os núcleos políticos que se aglutinavam para disputar posições, controle da justiça e do orçamento. Conflito sempre travado entre o patriciado rural. Dele participava o povo apenas como força de defesa dos interesses do Chefe. Destarte, falar de luta de classes no Brasil não lhe parecia adequado a nossa realidade secular. Ela sempre teve outro perfil onde traços “feudais e clânicos”, no seu dizer, surgiam de modo claro a qualquer observador atento;
c - definiu a visão aristocrática do trabalho predominante em nossa formação como um sério impedimento ao impulso industrial que o mundo vivia ao tempo da consolidação do Império. Por esta razão, ligada a valores mais do que a estruturas sócio econômicas, nosso processo industrial, começado na verdade com a vinda da Corte, foi tumultuado. Não seguiu linha evolutiva “sombartiana”, como procura definir com base na obra de Werner Sombart. Este conhecido autor aponta sérias diferenças na dinâmica e nos valores do capitalismo industrial emergente desde fins do século XIX. O capitalismo das grandes corporações e da retenção de lucros para fins de investimentos maciços em pesquisa. Sombart era um de seus autores preferidos. As estatísticas industriais do período Imperial mostram como estávamos longe destes valores. Não soubemos sequer canalizar de modo dinâmico os capitais que se tornaram ociosos com a extinção do tráfico decretada pela Lei Euzébio de Queiroz. Tudo se esfumou na busca de fortuna rápida pela via do jogo especulativo.
Desde a montagem do regime de trabalho escravo para o desenvolvimento econômico das sesmarias, portanto desde nossa origem, o trabalho era concebido, pela classe dirigente como o de direção, da inserção na burocracia do Estado, na política, advocacia ou guerra. O trabalho agrícola , artesanal, mesmo o comercial, era desqualificado, em alguns casos considerado indigno. O sentimento aristocrático de nossas elites estimulou a visão do trabalho como algo ignóbil. Lendo Machado de Assis vamos ver como esta ideologia era dominante. Seus personagens não trabalham. Vivem de rendas, sinecuras, empregos públicos, heranças, casamentos bem concebidos. Vivem de tudo menos de seu trabalho. O drama social do “empreguismo” brasileiro, entendido como um dos motivadores da luta pelo poder, deriva desta postura social;
d – Oliveira Vianna sustenta que estes valores foram sendo gerados pelas relações sociais firmadas no “oikos”, formando o homem de clã e o aristocrata orgulhoso de seus títulos e de sua ociosidade. O que denomina de economia de “oikos” reflete a realidade de auto subsistência dos engenhos isolados pelas distâncias, numa época de transporte precário, em lombos de mula, canoas vulneráveis e carros de boi a ranger sonolentos em trilhas inviáveis. Devido a estas condições estruturais, tudo se produzia localmente. Só se importava ferro,sal, armas e chumbo é o que se dizia. Tudo o mais surgia do esforço artesanal da massa de agregados, escravos e dependentes. O centrifugismo urbano e a precariedade do mercado interno decorriam desta dialética de auto sustentação interna do Engenho.
Os indivíduos viviam imersos em sua própria concepção do mundo, característica do que chamou de “clã fazendário”. Havia uma realidade de equilíbrio social e existencial que podia ser aplicada à análise tipológica de nossa personalidade básica. O homem do “oikos”, tanto o que vivia os seus papéis sociais a partir do pólo de poder quanto os muitos que os viviam a partir do podo da dependência, articulavam-se entre si, em suas avaliações subjetivas, a partir dos laços sociais legitimados pela realidade objetiva. Pela comunicação simbólica da linguagem, desde o nascimento, o individuo formava-se a partir de verdades axiomáticas na dinâmica relacional construída pelo “clã fazendário”. O poder do senhor era aceito como autocrático e fatal. A noção de superioridade ontológica formava a personalidade senhorial; e consolidava a submissão igualmente ontológica do dependente sem alternativa de vida, aprisionado em sua humildade psicológica e social;
e – o conjunto dinâmico que emergia desta realidade foi relacionado por Oliveira Vianna como a causa da debilidade no processo formativo de uma identidade nacional bem definida. O caráter localista e tópico dos centros produtivos, na grande síntese sociológica em que se transformavam em centros de ramificação social e pontos de referência existencial, rarefez o conceito de “nação”. E danificou, de modo grave, a prática democrática. Por isto era comum a regionalização do conceito de pátria, falando-se em pátria paulista, mineira e pernambucana até bem tarde em nossa história. Como comum foi a prática dos currais eleitorais e votos de cabresto.
A dispersão espacial vulnerabiliza os humildes. Torna-os sujeitos à justiça dos poderosos sem direito a defesa pela inexistência de poder compensatório. As práticas autoritárias emergem para o cotidiano como decorrência da estrutura sócio econômica e se expande sobre os diversos aspectos de nosso protagonismo político. A unidade não se firma na consciência submetida ao isolamento, a organização de classe torna-se inviável e o pluriverso de significações orientadoras do comportamento das massas ordena as lealdades próprias.
Conclusão
A partir destes pontos parece viável justificar nossa tese sobre a importância relativa de sua obra no quadro dos melhores interpretes de nossa cultura. E julgá-la mal percebida por muitos, levando ao desconhecimento relativo de suas posições teóricas.
Acredito que, a despeito de seus muitos equívocos, tanto conceituais quanto factuais, Oliveira Vianna segue sendo um sociólogo respeitável. Embora sintonizado com a época em que se formou, foi capaz de formular parâmetros teóricos válidos para a correta interpretação de nossa realidade.
Até hoje não seria nenhum exagero dizer que sua obra tem bom potencial hermenêutico para a adequada compreensão de fenômenos como empreguismo, patrimonialismo, ética da esperteza tópica e do oportunismo tático, carência de interesse pelo trabalho de médio e longo prazo necessário á pesquisa básica, mas capaz de produzir tecnologias originais.
A preferência pelo empreguismo imediatista, usando recursos públicos, como base eleitoral, prática consolidada desde o Império, segue sendo um traço marcante de nossa realidade. Por outro lado, nossa industrialização foi historicamente orientada de modo pragmático, na direção de “ industrias de montagem”, capazes de produzir, com máquinas e “engeneering” importados, produtos conhecidos e testados, plenamente aceitos pelo mercado, com demanda comprovada pela sociedade. Não se cuidou de industrias de inovação, capazes de criar mercado pela oferta de produtos desconhecidos. Este aspecto, básico no “capitalismo sombartiano”, como ressalta no seu “História Social da Economia Capitalista no Brasil”, abriria linha de ações baseadas na criação de mercados pelo lado da oferta e não de acordo à dinâmica da substituição de importações. Sem pesquisa, sem ciência, este tipo de capitalismo industrial torna-se inviável.
Sob o ponto de vista político, sua obra nos faz perceber como o assistencialismo e não o desenvolvimento das bases produtivas tem origem antiga. Segue sendo, ainda hoje, prática política prioritária, de bons resultados eleitorais. Tudo devido ao ressaltado em sua obra, a subserviência, dependência e miséria relativa de nosso povo. Fenômeno deformante da prática democrática, cuja compreensão segue sendo válida para entendermos melhor certos aspectos não só de nosso passado histórico senão também da moderna dinâmica política do Brasil.
Não obstante, convenhamos, não se pode sondar a profundidade quando flutuamos nas águas rasas da ideologia. A importância da obra de Oliveira Vianna continuará a ser negada por aqueles que se recusam a vê-la. A distância entre uma obra empírica e a forma como ela se revela à nossa consciência é mediatizada por um longo processo de deformações não conscientes. Proust definiu a personalidade alheia como um produto de nossa imaginação. Não parece estar muito afastado das posições veementes que a crítica radical de Oliveira Vianna sustenta para demolir sua importância, dificultando seu conhecimento por parte das novas gerações.
[Francisco José de Oliveira Viana nasceu em Saquarema (RJ), em 1883. Historiador, sociólogo e bacharel em direito, foi consultor jurídico do Ministério do Trabalho e ministro do Tribunal de Contas, além de membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro.
Publicou, entre outros títulos, Populações meridionais do Brasil (1920), O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), A evolução do povo brasileiro (1923), Problemas de política objetiva (1930), Raça e assimilação (1932), Formação étnica do Brasil colonial (1932), Instituições políticas brasileiras (2 volumes,1949).
Sua controvertida obra, marcada pelas posições conservadoras que sempre a orientaram, é considerada como o marco de uma nova fase de interpretação dos estudos brasileiros.Faleceu no Rio de Janeiro, em 1951.]