sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Os Africanos no Brasil:
 
[Debret]
Raça, Cientificismo e Ficção em Nina Rodrigues


Por JOSÉ APÓSTOLO NETTO

Resumo

O presente ensaio pretende ser um trabalho de desconstrução do discurso racial do médico nordestino Nina Rodrigues (1862- 1906) sobre o negro afro-brasileiro e a sua cultura.

Abstract

The present rehearsal intends to be a work of desconstrucion of the Northeastern doctor's Nina Rodrigues racial speech on the Afro-Brazilian black and your culture.

Keywords

Speeches; Race; Cientificism; Ficcion


INTRODUÇÃO

A idéia da fecunda interconexão entre História e Literatura tornou-se uma questão de ponta em alguns setores da historiografia institucional contemporânea. É o que vem ocorrendo, por exemplo, no interior da vertente interpretativa norte americana da Nova História Cultural. Com Hayden White e Dominique La Capra à frente, ela cumpre atualmente um papel de destaque nessa área de estudo. Em outros termos, surge como representante de um pequeno, mas significativo, movimento de aplicação e discussão teórico/metodológica da abordagem literária na história. E isto não por acaso. Nas suas fileiras existe uma nova geração de historiadores da cultura que faz uso quase inédito de técnicas e análises literárias para desenvolver novos materiais e métodos de pesquisa no campo da investigação histórica.

Como venho dedicando-me, há alguns anos, ao estudo da historicidade da arte e a dimensão artística da história, a partir da análise de alguns escritos de Monteiro Lobato e Gilberto Freyre – “O Saci”, “Negrinha” e “Casa Grande e Senzala”, respectivamente, no que diz respeito à questão do negro no Brasil, entendo que os pressupostos capitaneados pela Nova História Cultural são de grande serventia para o desenvolvimento de um trabalho dessa natureza.

Com vistas a trazer para solo cultural brasileiro a referida discussão e suas possíveis experimentações, pretendo neste artigo empreender uma análise crítica literária e historiográfica do livro “Os Africanos no Brasil” (1890-1905), de autoria do médico, etnólogo e professor da Faculdade de Medicina da Bahia Raimundo Nina Rodrigues (1862- 1906).


Tal empreendimento investigativo justifica-se, primeiro, porque Nina Rodrigues foi o primeiro estudioso brasileiro da virada do século XIX para o XX a colocar o problema do negro brasileiro enquanto um problema social, como uma questão de suma importância para a compreensão da formação racial da população brasileira; ainda que pese a perspectiva racista, nacionalista e cientificista que conforma a prática discursiva do autor.

Diz ele, no capítulo “Sobrevivências Religiosas, Religião, Mitologias e Culto”, sobre o tratamento dispensado pelas autoridades e pela imprensa baianas da época aos cultos de candomblé:

“Na África, estes cultos (jeje-nagô) constituem verdadeira religião de Estado, em cujo nome governam os régulos. Acham-se, pois, ali garantidos pelos governos e pelos costumes. No Brasil, na Bahia, são ao contrário consideradas práticas de feitiçarias, sem proteção nas leis, condenadas pela religião dominante e pelo desprezo, muitas vezes apenas aparentes, é verdade, das classes influentes que, apesar de tudo, as temem. Durante a escravidão, não há ainda vinte anos portanto, sofriam elas todas as violências por parte dos senhores de escravos, de todo prepotentes, entregues os negros, nas fazendas e plantações, à jurisdição arbítrio quase ilimitados de administradores, de feitores tão brutais e cureis quanto ignorante. Hoje, cessada a escravidão, passaram elas à prepotência e ao arbítrio da polícia não mais esclarecidas do que os antigos senhores e aos reclamos da opinião pública que, pretendendo fazer de espírito forte e culto, revela a toda hora a mais supina ignorância do fenômeno sociológico.

Não é menos para lamentar que a imprensa local revele, entre nós, a mesma desorientação no moda de tratar o assunto, pregando e propagando a crença de que o sabre do soldado de polícia boçal e a estúpida violência de comissários policiais igualmente ignorante hão de ter maior dose de virtude catequista, mais eficácia como instrumento de conversão religiosa do que teve o azorrague dos feitores”. (Rodrigues, 1977: 239)

Segundo, porque a sua obra, vista no conjunto, afigura-se como um clássico da literatura afro-brasileira. Ela é uma vasta e rica coletânea de informações e dados a respeito do universo cultural das comunidades negras no Brasil. Esforço etnográfico que nenhuma outra obra antes dela realizara.

Finalmente, porque a sua obra é considerada o resultado de um grande esforço intelectual de mais de uma década (1890-1905), no intuito de coligir e coletar registros e evidências (escritas e orais), no dizer do próprio autor, dos “últimos africanos no Brasil”. O que faz dela um ponto de referência bibliográfico obrigatório para todos os estudiosos da problemática do negro na sociedade brasileira.

Posto isto, convém dizer que a proposta aqui é empreender uma análise crítica literária e historiográfica do discurso racista de Nina Rodrigues em “Os Africanos no Brasil”; mapeando as condições de sua existência, para deste modo entendê-lo, não como revelador da história acontecimento (discurso que veicula uma verdade), e sim enquanto, ele mesmo, acontecimento histórico (discurso que é representação, construção).

Cabe dizer ainda que a presente desconstrução discursiva será operada por meio da crítica literária de cunho histórico/social e estruturalista, assentada na perspectiva da dialética forma/conteúdo que pretende ver o elemento externo (o extra-literário) como fator de criação , tornando-se assim elemento interno.

O contexto histórico, cultural, literário e institucional contribui, em grande parte, para a formação do pensamento do escritor e/ou do estudioso. Claro que não de forma mecânica e imediata, pois ele (o contexto) é tão múltiplo e diversificado – como também são múltiplas e diversas as interações que podemos estabelecer com o mesmo – que a estrutura mental do pensador acaba por ser constituída de inúmeras mediações psicogenéticas e sociogenéticas de difícil determinação espaço-temporal de causa e efeito.

Todavia, o contexto não deixa de ser, mesmo assim, um excelente critério de avaliação da forma mentis do escritor; e, no caso de Nina Rodrigues, ele torna mais compreensível a mentalidade racista, nacionalista e cientificista veiculada pela sua obra.

Ele, na condição de médico legista e professor de medicina legal na Universidade da Bahia, no fim do século XIX e começo do século XX, dificilmente escaparia ao engendramento de um pensamento deste tipo; pois, encontrava-se atuando – e por ele foi formado – dentro de um ambiente institucional, acadêmico e intelectual recortado, basicamente, pelas teorias e idéias racistas, nacionalistas, evolutivo positivistas, de sabor oitocentista. Darwin, Augusto Comte, Heckel, Cesari Lombroso, Enrico Ferri e R. Garofollo e Alexandre Lacassagne foram seus mestres, para os quais, numa atitude de discípulo zeloso, dedicou o volume de “As Raças Humanas e Responsabilidade Penal no Brasil”.

Visto assim, não fica difícil entender por que Nina Rodrigues assume, e comunica na sua obra, um discurso sobre o negro pautado no paradigma da determinação biológica e cultural da superioridade ariana, na medida em que ele recebe influências dos ideólogos e teóricos do mesmo.

Mas o interessante, após termos feito este pequeno mapeamento da natureza histórica e cultural do pensamento de Nina Rodrigues, é ver como ele encontra-se estruturado no livro “Os Africanos no Brasil”. Importando-nos, agora, apenas identificar o estilo do autor, que configura-se enquanto uma linguagem pretensamente “neutra”, “objetiva”, cientificista e de elaboração de enredo do modo trágico.¹

O estilo de Nina Rodrigues é denunciado pela própria organização formal de “Os Africanos no Brasil”. Ela traduz-se basicamente na forma de narrativas analíticas e descritivas, comunicadas por um narrador em terceira pessoa e onisciente, que está referenciado no passado (pretérito perfeito); representando literariamente assim o método de investigação científica positivista do século passado.

A técnica literária realista manipulada por Nina Rodrigues o deixa muito à vontade com a sua consciência científica para construir toda a teia discursiva de classificação e tipologização do universo do negro em “Os Africanos no Brasil”, visto que, respaldado por ela, no sentido de criar a ilusão de distanciamento científico, acredita e leva-nos, nós leitores, a acreditar que ele (o autor) esteja falando do seu objeto de estudo (no caso, o negro) apenas aquilo que lhe é intrínseco, sem interferências subjetivas.

Com efeito – e é aí que reside o perigo maior – o autor e o leitor não se dão conta, graças a alguns procedimentos lingüísticos e literários, do teor racista e, portanto, recortado, da rede discursiva de “Os Africanos  no Brasil”, tomando-a como verdade. Ou seja, são levados a acreditar no enunciado básico do livro de que o negro é inferior, em todos os aspectos, em relação ao homem branco “civilizado”, devido as suas características “deficientes”, “patológicas” e “degenerativas”.

A técnica realista constitutiva e constituinte da narrativa de “Os Africanos no Brasil” funciona, por assim dizer, como um narcótico mental que impede o leitor de apreender a interferência da subjetividade do autor no momento narrativo no qual ele constrói um significado sobre o negro.

Ocorre, contudo, que Nina Rodrigues, o sujeito do discurso, esconde-se atrás do narrador onisciente (que tudo conhece) e, através dele, delega, por sua vez, voz ao negro, ocultando-se da narrativa, da qual temos a impressão de contar-se a si mesma. E estes expedientes formais, sem falarmos de que a matéria narrada no passado torna-se mais verídica, impedem, ou apenas dificultam, a nossa percepção de que esta voz do negro não passa senão de uma construção discursiva. Em outro termos, impede-nos de ver que a voz do negro é filtrada pela linguagem racista do autor, pela sua subjetividade.

Em termos de estrutura profunda e estrutura superficial, a análise crítica literária revela ainda como o texto “Os Africanos no Brasil” esconde, atrás de um suposto trabalho científico de caracterização do universo negro, um pernicioso processo de diferenciação racial entre brancos e negros. Processo de diferenciação baseado na inferioridade do segundo em relação ao primeiro.

Quando Nina Rodrigues, por exemplo, narra os cultos religiosos, os rituais, a magia afro-brasileira, é somente para demonstrar a incapacidade do negro assimilar a religião católica, pelo fato, segundo o autor, de ser desprovido do pensamento abstrato. Ou, quando refere-se à língua do negro, é para demonstrar a simplicidade da estrutura da mesma. E, finalmente, quando aborda a arte afro, é para concluir que ela é “rústica”, “deformada” e “primitiva”.

Com uma visão pessimista em relação à presença do negro na sociedade brasileira, Nina Rodrigues não poderia desenvolver textualmente o seu pensamento senão através de uma elaboração de enredo no modo trágico. O livro “Os Africanos no Brasil” tenta a todo momento mostrar os perigos que representa a influência direta ou indireta do negro na nossa cultura; bem como a descrença no florescimento da Nação brasileira fundada na miscigenação, sugerindo o branqueamento, via imigração européia, da população como fator de redenção nacional.

Concluindo, espero que tenha conseguido descrever o estilo literário e historiográfico de Nina Rodrigues no livro “Os Africanos no Brasil”. Estilo que, como foi apontado, pode ser descrito como cientificismo trágico.

Ao mapear as contribuições históricas e culturais na formação do pensamento racista do autor e, posteriormente, demonstrar como este foi transfigurado literariamente, detectando os recursos expressivos acionados, acredito ter colocado em operação a dialética estrutura conteúdo ou, como preferirem, texto/contexto.

Esse mapeamento serviu para mostrar o poder capturador e narcotizante do discurso racista de Nina Rodrigues, na medida em que o trabalho desmascarou os expedientes lingüísticos e literários de criação da idéia de neutralidade e objetividade analítica do mesmo, funcionando no sentido de construir uma “verdade” sobre o negro brasileiro.

         

BIBLIOGRAFIA
1. Fontes primárias

RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 4 ed.. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1976

2. Livros e revistas

BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1979.

BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural. In: Análise Estrutural da Narrativa. Pesquisas Semiológicas. Rio de Janeiro: Vozes, 1976.

CORRÊA, Mariza. Antropologia e Medicina Legal. In: Caminhos Cruzados. São Paulo: Brasiliense, 1982.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Estudos de Teoria e História Literária. 7 ed. . São Paulo: Cia Editora Nacional, 1985.

HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992

LEITE, Lígia Chiappini Morais. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 1985.

SKIDMORE, T. E. Preto no Branco: Raça, Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

WHITE, H. Meta História. A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1992.

[*JOSÉ APÓSTOLO NETTO- Historiador e doutorando em História ]
Fonte:
Parcerias: Espaço Acadêmico-Editor Antonio Ozai
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*Biografia de Nina Rodrigues:


[Notas complemantares de Literacia]

Raimundo Nina Rodrigues nasceu no Maranhão, na cidade que hoje tem seu nome, em 1862. Seu pai, coronel Francisco Solano Rodrigues, era dono do Engenho São Roque, que teria passado às mãos de seus escravos, devido ao desinteresse de seus sete filhos por ele. Sua mãe, Luiza Rosa Nina Rodrigues, seria descendente de uma família sefaradi que veio para o Brasil fugindo das perseguições aos judeus na Península Ibérica. Nina Rodrigues estudou no Colégio São Paulo e no Seminário das Mercês, em São Luís. Pelas suas próprias, e pelas referências de seus colegas, parece ter tido uma saúde frágil. Nas lembranças familiares, era descrito como franzino, “muito feio”, e irritadiço. Em 1882, matriculou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, seguindo o curso até 1885, quando se transferiu para o Rio de Janeiro, onde concluiu o quarto ano de faculdade. Voltou à Bahia no ano seguinte, quando escreveu seu primeiro artigo, sobre a lepra no Maranhão.
 Retornando ao Rio, concluiu o curso, defendendo uma tese sobre três casos de paralisia progressiva numa família, em 1887. No ano de 1888, clinicou em São Luís, tendo consultório na antiga rua do Sol, hoje Nina Rodrigues. Rezam as tradições locais que ele ganhou o apelido de “Dr. Farinha Seca” por ter publicado no jornal A pacotilha crônicas contra a alimentação popular baseada na farinha d’água. Além de publicar suas crônicas de jornal numa brochura, começava também a contribuir com artigos para a prestigiosa Gazeta Médica da Bahia. Num desses artigos, tentava uma classificação racial da população maranhense, usando as expressões “etnologia” e “economia étnica”. Em 1889, prestou concurso para a Faculdade de Medicina da Bahia, vindo a ocupar o lugar de adjunto da Cadeira de Clínica Médica, cujo titular era o Conselheiro José Luiz de Almeida Couto, republicano histórico, abolicionista e político de projeção nacional.
 Nina Rodrigues e Alfredo Thomé de Britto, também médico e mais tarde diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, casaram-se com filhas do Conselheiro – a família conta que cada um noivara antes com a irmã que casaria com o outro. Conta também que, depois de sua morte, a viúva de Nina Rodrigues, Dona Maricas, só não casou com um irmão dele por oposição de sua própria família. O casal teve apenas uma filha, Alice, que morreu logo depois do pai.
 Em sua segunda incursão na classificação racial da população, dessa vez a nível nacional, num artigo publicado na Gazeta e no Brazil Médico, do Rio de Janeiro, em 1890, aparece pela primeira vez a rubrica antropologia – “anthropologia patológica”. Escreve também uma nota apoiando a iniciativa de Braz do Amaral, professor de “Elementos de Antropologia” no Instituto de Instrução Secundária de Salvador, de iniciar uma coleção de “objetos antropológicos” – esqueletos, chumaços de cabelo e recortes de pele dos índios do Estado. No Terceiro Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, reunido em Salvador, em outubro desse ano, e de cuja comissão executiva Nina Rodrigues foi eleito tesoureiro pela Congregação da Faculdade, apresenta três trabalhos – um deles sendo o relatório da única autópsia feita, por ele, na Bahia durante uma então recente epidemia de influenza.
 Transferido pela reforma do ensino médico de 1891 para a cadeira de Medicina Pública, ocupada por Virgilio Damásio, como professor na disciplina de Medicina Legal, empenha-se desde então em por em prática as propostas de Damásio que, depois de visitar vários países da Europa, sugerira em seu relatório da visita a implantação do ensino prático e a nomeação dos professores de medicina legal como peritos da polícia. A reforma Benjamim Constant criara também a cadeira de Medicina Legal nas faculdades de direito e instituíra seu ensino prático nas delegacias de polícia. No mesmo ano, Nina Rodrigues assumiu o posto de redator chefe da Gazeta Médica e assinou um editorial criticando asperamente a ausência de debates e o vazio da vida intelectual de Salvador. Integrava também a comissão da Faculdade encarregada de publicar a Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina – prevista nos estatutos desde 1884, mas que só seria iniciada em 1902 – e onde também publicaria vários artigos de sua autoria. Integrou ainda a comissão, eleita pela Congregação da Faculdade, para fazer a reforma de seus estatutos: uma das propostas apresentadas por ele, rejeitada pela Congregação, só se tornará lei muitos anos depois, por iniciativa de um de seus alunos, Afrânio Peixoto, no Rio de Janeiro – a de criação de uma habilitação específica para o médico perito.
 Em 1892, publica pela primeira vez na Gazeta um artigo sob a rubrica “anthropologia criminal”, citando, também pela primeira vez, as “doutrinas da escola positiva italiana”, na análise do crânio de um bandido que se tornara famoso, Lucas da Feira. Integrou também o Conselho Geral de Saúde Pública da Bahia e aí re-apresentou sua proposta de criação da figura do perito em Medicina Legal, mais uma vez não aceita. Em 1894, Nina Rodrigues publicava seu primeiro livro, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, conjunto de lições dadas no ano anterior, e no qual junta sua crescente preocupação com a Medicina Legal ao seu interesse anterior sobre o papel da raça na patologia da população brasileira. O livro, cuja última edição é de 1957, era dedicado a Lombroso, Ferri e Garófalo – “chefes da nova escola criminalista” - a Lacassagne –“chefe da nova escola médico-legal francesa” - e ao dr. Corre, “o médico legista dos climas quentes”. João Vieira, professor de Direito Criminal em Recife, debateu com ele sobre o tema na Revista Brazileira, mas levou em consideração suas sugestões a respeito da precocidade do brasileiro em matéria criminal, no substitutivo que apresentou, como deputado federal, ao projeto de Código Penal que se discutia na Câmara em 1896. Nesse mesmo ano, Nina Rodrigues publica também seu primeiro artigo no exterior, “Nègres criminels au Brésil”, na revista editada por Lombroso em Turim, uma ampliação de sua análise sobre Lucas da Feira.
 Com a aposentadoria de Virgilio Damásio em 1895, Nina Rodrigues assume oficialmente a Cadeira de Medicina Pública e funda, com Alfredo Britto, Juliano Moreira, Pacheco Mendes, e outros médicos, a Sociedade de Medicina Legal da Bahia, da qual é eleito presidente, e a Revista Médico Legal da Bahia, órgão da Sociedade, sendo eleito também para seu conselho editorial. Ambas teriam vida curta, desaparecendo dois anos depois. A Sociedade aprovou uma proposta de Nina Rodrigues, enviada para o legislativo estadual, de um plano de organização do serviço médico-legal da Bahia, sem qualquer resultado prático, conforme se queixava ele depois aos seus alunos. São aceitos como sócios correspondentes, entre outros, Souza Lima, Clóvis Bevilacqua, Candido Mota e Alcântara Machado. Ainda neste ano, Nina Rodrigues é eleito sócio da Medico Legal Society de Nova Iork.
 No ano seguinte, começa a publicar na Revista Brazileira os artigos que comporiam seu segundo livro, O animismo fetichista dos negros baianos, publicado primeiro em francês, na Bahia, parece que traduzido por ele mesmo, em 1900, e só re-editado uma vez, em 1935, com prefácio e notas de Arthur Ramos. Publica nos Annales Médico-Psychologiques e na Revista Brazileira uma análise sobre Antonio Conselheiro e Canudos que será lembrada por Euclides da Cunha em Os Sertões. A análise do crânio do Conselheiro, o qual recebeu no final da Quarta Expedição, só sairá publicada quatro anos depois, em francês, também nos Annales – só sendo editada em português quarenta anos depois numa coletânea organizada por Arthur Ramos (Collectividades Anormaes).
 Sua aula inaugural dos cursos do ano de 1899, dedicada ao tema “Liberdade profissional em medicina”, foi transcrita no Brazil Médico, no Jornal do Comércio e na Revista Médica de São Paulo, além de impressa em brochura por alguns médicos paulistanos. Amplamente divulgada, essa aula lhe valeu elogios da Congregação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a citação de Souza Lima no IV Congresso de Medicina e Cirurgia (Rio, 1900), ocasião em que os médicos pediram ao Parlamento que desse uma interpretação definitiva à expressão “liberdade profissional”, inscrita na Constituição. A expressão vinha sendo interpretada, particularmente pelos positivistas, como livre exercício da profissão independentemente de qualificação pelas escolas oficiais – o que os médicos viam como ataque ao ensino acadêmico e defesa do charlatanismo. Nina Rodrigues analisou também o atentado ao presidente Prudente de Moraes, vinculando a ação de Marcelino Bispo, um ex-combatente de Canudos, que tentou assassinar o presidente, tanto à sua ascendência indígena, quanto ao ambiente político-social do país, e publicou, em francês, uma extensa monografia sobre uma pequena cidade do interior da Bahia, acompanhada de genealogias que comprovariam os efeitos degenerativos da mestiçagem – trabalho que nunca saiu em português.
 Em 1901, Nina Rodrigues publicou o primeiro Manual de autópsia médico-legal e O alienado no Direito Civil Brasileiro, com comentários e sugestões ao projeto do Código, então em discussão. O livro foi incorporado ao VI volume dos Trabalhos da Comissão da Câmara dos Deputados, que analisava o projeto de Clóvis Bevilacqua. Numa nota na Revista dos Cursos, anunciava a inauguração do “núcleo do primeiro museu médico-legal do Brasil”, que constava de cerca de 50 peças, mas não o entregou à faculdade, esperando que “se reformulem os estatutos da Faculdade ou nela se organize um museu”. Deve ter levado as peças de sua casa, onde estavam, para a faculdade, já que várias foram destruídas no incêndio de 1905. As que resistiram ao incêndio estão no Museu Estácio de Lima do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador.
 Em outubro de 1903, Nina Rodrigues foi com a família a São Paulo e recebeu homenagens de médicos e juristas. São Paulo não tinha faculdade de Medicina, mas Nina Rodrigues afirmou num discurso que todos que o recebiam formavam “uma congregação de mestres que podia ser presidida pelo vosso notável Pereira Barreto”. Visitou o Butantã, a Santa Casa de Misericórdia – onde recebeu “belíssimos kistos kydaticos conservados em álcool” – a Repartição Central de Polícia, o quartel do Corpo de Bombeiros e a Escola de Farmácia. Os jornais diários e as revistas médicas publicaram elogios a sua obra e, num deles, Franco da Rocha faz uma descrição de Nina Rodrigues: “fisionomia à Rui Barbosa, muito simpático, lhano, afável, inteiramente despreocupado de assumir importância, consolidou prontamente nessa atmosfera amorável o conceito em que era tido; cativou imediatamente a todos que o procuraram, fato que se tornou patente nas atenções que encontrou por toda parte”. Num banquete em sua homenagem, na Rotisserie Sportsman, estavam presentes Emilio Ribas, diretor do Serviço Sanitário, João Passos, Procurador do Estado, Brasilio Machado e Cândido Motta, professores da Faculdade de Direito, Antonio de Godoy, Chefe de Polícia, Alcântara Machado, Vital Brasil e Xavier da Silveira. Encantado com as homenagens, Nina Rodrigues afirmou num discurso que encontrara em São Paulo o Brasil civilizado e culto, um “baluarte das tradições latinas”. Dois anos depois dedicaria uma coletânea de seus trabalhos em Medicina Legal “aos juristas de São Paulo”, afirmando na introdução que as homenagens que recebera não eram destinadas a sua pessoa, mas sim ao símbolo que ele representava “da colaboração fraterna das duas grandes classes, a Jurídica e a Médica, na obra comum de garantia da ordem social”. Vários dos médicos e juristas que o receberam escreveriam necrológios emocionados três anos depois e Alcântara Machado faria, em 1940, uma das apreciações mais sintéticas e completas de sua obra.
 Em 1904, além de fazer, mais uma vez, um apelo sobre a necessidade de regulamentar a figura do perito, dessa vez ao Congresso pela unificação das leis processuais, reunido no Rio de Janeiro – apelo ao qual juntou a análise de vários casos médico-legais, publicou, na Revista dos Cursos, um extenso trabalho, nunca editado em livro, de revisão da legislação brasileira sobre a questão da assistência aos alienados, onde apresentava um plano para a construção de um hospital asilo. Em apêndice, vêm os artigos que publicara no Diário de Notícias da Bahia sobre a epidemia de beribéri que matou metade da população do Asilo São João de Deus. Como resultado de sua campanha, os loucos restantes salvaram-se, a Faculdade fez um convênio com o governo do Estado para a construção de um novo hospital e Nina Rodrigues integrou a comissão nomeada para planejá-lo – além dele, relator, participavam Antonio Pacífico Pereira e Luiz Pinto de Carvalho. O relatório da comissão, publicado na Revista dos Cursos e numa brochura, foi entregue ao diretor Alfredo Britto no ano seguinte e contém, além do planejamento da organização do ensino de Clínica psiquiátrica e do asilo de alienados do Estado, as plantas do asilo e uma descrição minuciosa de seu funcionamento. Nesse mesmo número da Revista foram publicadas as bases do acordo entre a Faculdade e a Secretaria de Segurança Pública sobre as perícias policiais, a serem feitas sob direção do catedrático de Medicina Legal: esses são os primeiros documentos formais sobre a colaboração informalmente feita há tempos entre a Faculdade e a polícia. Os acordos seriam revalidados por Oscar Freire, sucessor de Nina Rodrigues na cadeira, em 1907, e sistematicamente renovados nos anos seguintes. A figura do perito fora, finalmente, apropriada pela Faculdade de Medicina – o que se repetiria no Rio de Janeiro e em São Paulo, graças aos trabalhos de dois alunos de Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto e Oscar Freire. Em 1966, no entanto, as perícias médico-legais voltariam ao controle das Secretarias de Segurança Pública.
 Em janeiro de 1905, um incêndio destruiu parte da Faculdade de Medicina e o laboratório de Medicina Legal, lugar de trabalho de Nina Rodrigues. Segundo o Diário da Bahia, foram destruídos “diversos trabalhos seus de importância científica; trabalhosa coleção de ossos humanos, cerca de 50, medidos e tratados; a cabeça de Antonio Conselheiro, o crânio de Lucas da Feira, além de uma outra coleção de crânios escolhidos, o que foi enormíssima perda”.
 No ano seguinte, indicado pela Congregação da Faculdade como delegado ao IV Congresso Internacional de Assistência Pública e Privada em Milão, a realizar-se em maio, Nina Rodrigues embarcou com a família para sua primeira viagem à Europa. Em Lisboa, onde participou de outro congresso médico, encontrou seu  amigo desde os tempos de estudante, Justo Jansen Ferreira, que, numa comovida rememoração dele,  registrou que o “insidioso mal” (aparentemente câncer no fígado) lá tinha sido diagnosticado. Nina Rodrigues morreu em Paris, a 17 de julho e, embalsamado por um dos médicos a quem admirava, o professor Brouardel, foi enterrado na Bahia a 11 de agosto.
 Seguir quase passo a passo a carreira de Nina Rodrigues ajuda a por em relevo duas marcas importantes em sua biografia intelectual, curta em anos e larga em publicações: seu intenso zelo institucional, simbolizado pelo fato de que ele estava na Europa também para  procurar instrumentos para equipar o seu tão sonhado laboratório, em construção quando morreu; e sua adesão às idéias científicas, vigentes aqui e no exterior, de sua época. O que não é sinônimo de adesão às práticas científicas vigentes no país – ao contrário, Nina Rodrigues era um crítico feroz da atmosfera intelectual morna que o cercava e em mais de uma ocasião denunciou a falta de infraestrutura da sua faculdade e as práticas ultrapassadas de pesquisa e docência: o melhor exemplo disso sendo a Memória Histórica da Faculdade para o ano de 1897, que foi incumbido de redigir – sendo praxe, a cada ano, um docente relatar o que se passara de relevante no meio acadêmico. Sua memória era tão crítica às práticas vigentes que só foi publicada quase oitenta anos depois, em 1976, na mesma Gazeta Médica da qual fora editor.
 Quanto às idéias científicas da época, sua adesão era quase completa: é preciso dizer quase, já que, famoso por seu racismo, ele foi menos lido na clave do pesquisador cuidadoso e responsável pelo registro de boa parte da história oral dos descendentes de africanos na Bahia, aos quais dedicou vários de seus textos, tendo também ele enfrentado o preconceito local ao fazê-lo: consta da tradição baiana que recebeu o apelido de “negreiro” por essas pesquisas. Também não devem ter sido muito bem recebidas suas análises sobre o ‘fetichismo’ dos terreiros nas quais ele o descrevia como análogo a práticas católicas – do mesmo modo que atribuía a perseguição policial aos terreiros a um ‘atavismo’ compartilhado pela polícia e pelos crentes.  Em seus muitos textos (65 artigos na sua bibliografia, ainda incompleta, e seis livros), quatro são artigos que ele, ou seus herdeiros intelectuais, deixaram em francês – certamente não por acaso, todos dizem respeito à influência da raça na degeneração do povo brasileiro, o mesmo assunto que predomina nos seus dois livros póstumos - ou três, se contarmos que o Animismo só apareceu em francês durante sua vida. Os livros que não se tornaram acessíveis como livros, enterrados como extensos artigos nas páginas da Revista dos Cursos da Faculdade, ou publicados em brochuras em Salvador, são textos mais técnicos, seja sobre a prática da medicina legal, seja sobre o serviço de assistência aos alienados no país, assunto ao qual esteve dedicado no final da sua vida, e são extremamente informativos sobre a história de ambos esses campos do saber no Brasil.
 Ainda que sua carreira possa ser lida sob a inspiração teórica de Pierre Bourdieu, ou mesmo que ela tenha admiradores contemporâneos, creio que não foi ainda analisada de maneira definitiva. Estando tão próximo o centenário de sua morte, o melhor que os pesquisadores interessados nele poderiam fazer seria re-editar seus textos, propiciando assim uma análise mais refinada de sua atuação e do contexto dela. O animismo fetichista dos negros baianos, por exemplo, teve uma triste sina: livro composto a partir de uma série de artigos aparecidos na Revista Brazileira entre 1896 e 1897, foi primeiro traduzido para o francês, aparentemente pelo próprio Nina Rodrigues, e publicado por uma gráfica de Salvador. Seu auto-intitulado discípulo, Arthur Ramos, fez uma colagem dos dois textos e o publicou em 1935. Sem uma acurada comparação das duas versões, será difícil incluí-lo no currículo de cursos de antropologia – apesar das belas cenas de pesquisa que ele contém, dos cuidados metodológicos que sugere, um pouco à la Evans-Pritchard, antes de eles terem se tornado moeda corrente na antropologia, e pela frase profética sobre a influência cultural dos negros: “na Bahia todas as classes sociais estão aptas a se tornarem negras”.
            Os livros publicados de Nina Rodrigues são, pela ordem: As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894). Salvador. Livraria Progresso, 1957; O animismo fetichista dos negros baianos (1900), com prefácio e notas de Arthur Ramos. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira S.A., 1935; O alienado no Direito Civil Brasileiro (1901).Rio de Janeiro. Editora Guanabara, sdp (provavelmente 1933); Manual de autópsia médico-legal. Salvador. Reis & Comp., 1901; Os africanos no Brasil (1932). São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1977; Collectividades anormaes , coletânea de artigos, organização e prefácio de Arthur Ramos. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira S. A., 1939.
 Referências :
 Alcântara Machado, “Nina Rodrigues”, em Leonidio Ribeiro, ed. Arquivos de Medicina Legal e Identificação,  X (18), 1940, Rio de Janeiro.
Augusto Lins e Silva, Atualidade de Nina Rodrigues, estudo biobibliográfico e crítico. Prefácio de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro. Leitura, 1945.
Mariza Corrêa, As ilusões da liberdade. A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista. Editora da Universidade São Francisco, 2001-2a edição
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