sábado, 4 de dezembro de 2010


    “O Processo” , de Franz Kafka; uma interpretação.

 por Nelson Mello e Souza   

Chanceler da Academia Brasileira de Filosofia    

 

         Em agosto de 1914 Kafka  inicia a novela “ O Processo”. (1) Era a sua segunda. Como no caso de “Amerika”, sua primeira tentativa, a deixou também inacabada, simples fragmento, sem qualquer esforço posterior para completá-la. Sequer tentou  ordenar os capítulos que ficaram perdidos, meio soltos, em meio à desordem de seus papéis.   
Naquele ano ainda não era, nem podia ser, conhecido como escritor. Afinal pouco  publicara em revistas, nada mais.  
Kafka aproximava-se dos trinta anos de idade.  Já escrevera muito, pois o fazia todos os dias, ou melhor, todas as noites. Era fiel à sua vocação. Mas guardava os textos para si. Via na literatura  o sentido de sua vida e nenhum de seus amigos duvidava disto.      
Em anotações no Diário, entrada de 6 de junho de 1912, afirma, citando Flaubert: “minha novela é o rochedo no qual me agarro e vivo; ignoro o que se vai pelo mundo.“   “Rochedo” era como entendia a literatura,  forma pela qual se “agarrava à vida” em alusão evidente ao “naufrágio existencial” em que vivia.  
Por isto pretendia manter-se isolado de tudo, “ não como um eremita, mas como um morto”. (2) Viver para a literatura, transmitir “o mundo tremendo que tinha dentro de si“. Teria de  “liberá-lo”. (3 ) Entendia esta tarefa como imposição do Ser, a forma de seu destino.
Kafka interpretava a  arte de escrever como um problema de precisão e auto disciplina. Seu objetivo era ordenar o que se pretendia dizer com clareza. Em seu caso,  envolvido como estava pela insegurança quanto à vida e o denso tumulto interior que o atormentava nos silêncios de suas muitas insônias e enxaquecas, seus escritos teriam de refletir o que via e como o sentia. No labirinto de suas ambiguidades consumia-se sem sentir como transmitir este universo próprio e complicado. Por isto sentia a necessidade de  criar estilo próprio, adequado para liberar este “mundo tremendo”.  
A complexidade dos sentimentos contraditórios, a plena consciência do fluxo simultâneo e entrecruzado das imagens , memórias, remorsos, indecisões, arrependimentos, as duvidas que emergiam para desaparecer, visões do passado que se mesclavam às do presente num caleidoscópio subjetivo de pensamentos dispersos e sem foco, vincavam a face deste mundo. Se não lograsse “liberá-lo” não realizaria sua vocação de escritor.  
Imaginou tê-lo conseguido no ano de 1912 quando escreve algo que veio a considerar como adequado. Por isto não queimou, nem destruiu, os dois contos que surgiram naquele ano, a “Metamorfose” e “A Sentença”.
Parecera –lhe haver , finalmente, vencido o dramático desafio subjetivo de onde lhe vinham as dúvidas quanto ao valor de sua produção. Superada parecia estar  a ambivalência, o sentimento de algo incompleto, de carência, de falta e precisão, de alguma coisa frouxamente exposta que lhe deixava o gosto da maldição pela incapacidade de dar o acabamento desejado aos seus textos. 
Neste ano de 1912 julgara haver encontrado a  gênese de sua afirmação como escritor.    
Sempre tentara estilo próprio. A insistência nesta busca parece estar refletida na obra que, evidentemente, deixou inacabada, “Descrição de uma Luta”.  Era uma “luta” , na verdade,’luta” em que não se vence e não se perde. Tudo o que nos fica é apenas o desgaste interior, a insatisfação conosco mesmo.
A técnica que buscava, traduzia-se numa linha expressiva complexa e sinuosa, plena de jogos de imagens, nas quais sonho e realidade se fundiam numa única dimensão. Só através de forma expressiva assim construída,   por ilhas subjetivas que se unem a despeito de todas as diferenças,  poderia encontrar-se como escritor e como homem.  
A linguagem direta e comum não teria a força que buscava. Através dela, em forma retilínea, lógica, realista, contida e limitada pelo sentido exato de cada palavra,  não tinha como exprimir o  tumulto cruzado de impressões e a velocidade confusa de  idéias em atropelo, muitas vezes em desencontro umas com as outras.  
Kafka não conheceu sua contemporânea inglesa, Virginia Wolff. Se a tivesse conhecido talvez encontrasse alguém, finalmente, com quem conversar sobre as dificuldades de exprimir o fluxo da consciência com palavras fixas;  a convergência do tempo quando o tempo não converge, porque segue sempre adiante;   o  jogo cruzado das imagens quando tudo o que um escritor tem a sua disposição são as palavras  do dicionário, armadas em  frases retilínias e diretas.
Sua busca não ignorava o fato de estar propondo algo cifrado, pleno de códigos pessoais.  Tudo armado e desarmado dentro de um jogo complexo de símbolos e sombras, como nas parábolas e nos mitos, compondo processos de comunicação indireta, cuja exegese poderia ser quase impossível.  
Kafka, em toda sua vida de escritor, sempre  pretendeu  algo que pudesse  reproduzir o desenho da vida. Pouco a pouco foi desanimando de seu intento porque neste desenho as peças de que  dispunha não se encaixavam como desejava. O que lhe surgia por inteiro era um todo carente de lógica, compaixão  e amor. Um projeto desconjuntado, “cheio de som e de fúria, narrado por um idiota”.  
Afinal, como fazer-se entender por homens que percebiam neste labirinto de imagens, nesta cacofonia de valores, a plenitude pragmática da única  realidade dentro da qual viviam como peixe em aquário, inconscientes de sua prisão, numa vida “normal”? Vida  composta por toda uma estrutura de gestos e ambições a serem desmontados no tempo, porque sem importância e sentido?
Diante do absurdo evidente e por isto mesmo invisível aos que o viviam como verdade, não seria possível entrar no mesmo jogo,  fingindo a passividade impossível.
Por isto lutou. Lutou a sós e desarmado, aceitando como evidente a derrota, contida na inviabilidade de ser compreendido.  Mesmo pelos amigos. Há muitos registros em cartas e nos Diários que indicam esta posição de dúvida quanto ao logro de seu objetivo como escritor. (4)
Na verdade só o logrou, como Van Gogh em sua arte, depois de morto. E só o logrou, ao contrário de Van Gogh, não em função da  verdade descoberta, mas de uma ironia encoberta.
Foi  a crescente resposta positiva do público leitor, gerada pela má interpretação de seu amigo fraterno  Max Brod,   que o projetou como interprete de mensagens religiosas, de condenação ao dogmatismo e ao totalitarismo. O estranho fenômeno da má leitura acabou por construir sua receptividade mundial. 
Kafka acabou tendo de esperar um pouco mais, esperar por outro equívoco, o de considerá-lo um profeta do irracionalismo burocrático para ganhar plena notoriedade, indo parar no teatro e no cinema, especialmente devido à obra que ora comentamos, “O Processo”.  
Se pudesse renascer e testemunhar o que via nos anos 50 e 60, talvez desejasse uma segunda morte   jamais um segundo retorno. Tendo sido um solitário em vida, o ulterior destino de sua glória o fez transitar entre multidões que passam de olhar vazio por suas mensagens. Tipos que  nelas encontram  apenas o “fácil”, o “lógico”, o “evidente”. Entre Kafka e o homem comum surgiu para ficar uma barreira sem cor, mero ornamento retórico de uma  inteligência opaca à qualquer compreensão filosófica. 
Sua obra teria de esperar pelos anos 70 e 80 para ser recebida, enfim, por críticos capazes de validar sua vocação e entender seu processo criativo, especialmente a partir do alentado estudo feito pelo erudito Wilhelm Emrich, publicado originalmente em 1968.   Logrou-se , finalmente, escapar meio torto e pequeno, é certo, mas sempre escapar,  do labirinto de subjetividades ideologicamente dominadas pelas idéias força da apologia religiosa e do totalitarismo burocrático, ou ainda do pesadelo de um Édipo mal resolvido pelo confronto com o paterno e o familiar. Formas dominantes de se interpretar a obra de Franz Kafka.   

                              
Acompanhando sua trajetória compreende-se  a impaciência de um artista sensível e exigente como Kafka o era para com sua obra.
Colocando-se diante  do texto que produzira ou do que estava produzindo, com versões as vezes diferentes, caso do inacabado “O Caçado Gracchus”, acabava decidindo pelo abandono. O que fazia não o satisfazia. Era cifrado demais, não podia ser compreendido desta forma, nem lograva por ela, transmitir verdadeiramente o que sentia. .
Atormentava-se com a impossibilidade comunicativa que desfalecia em meio ao texto e o abandonava. Não chegava ao final por inteiro. Deixava-o de lado, ou mesmo o destruía, num gesto de frustração.
Por isto seus escritos juvenis, antes de 1912, quando lhe pareceu, especialmente depois de haver escrito “A Sentença”,  haver encontrado a forma desejada de escrever, foram quase todos rasgados, queimados ou abandonados. Foi pouco o que deles nos ficou.
Não obstante esta satisfação de 1912, o fenômeno  acabou revelando-se fugaz. Porque em seus escritos posteriores, incluindo-se a novela “O Processo”  que ora nos propomos a comentar e,  já nos anos finais , “O Castelo”, passando por vários textos magníficos como “Investigação de um Cão”, “ A Muralha da China”, “O Caçador Graccus”, “Relatório ante uma Academia” e tantos e tantos outros bem posteriores a 1912,  a velha e dolorida insatisfação voltou como fantasma gótico a atormentá-lo.
Kafka regressa ao antigo hábito. Deixa os textos inacabados ou não os considera  aceitáveis para eventual publicação. Pelo resto de sua vida esta continuou a ser a tônica dominante, a do agnosticismo quanto a seu próprio valor.   
 Kafka morreu em completo desalento quanto ao fato de ser algum dia compreendido.  Por isto decidiu, num rompante de medo e vergonha, destruir tudo. Já bem fraco, em seu leito de morte, obrigou seu amigo Max Brod, sob juramento, a fazê-lo com todos os textos que estavam sob sua guarda, queimando ele mesmo tudo quanto estava por ali, a seu alcance. Foram pilhas e pilhas de documentos.  Ninguém pode jamais saber o imenso valor do que se perdeu neste desespero mudo e surdo de quem se sentia um inútil sem sentido. 


                                                           [Dora Dymant]


Até o derradeiro instante,  passados em agonia nos braços da jovem Dora Dymant,  Kafka foi, para  desespero dos amigos, o iconoclasta em fúria de  sua obra.
Para ele seu trajeto literário falira.  Ter produzido  uma literatura cifrada e, ao mesmo tempo fazer-se entender, era um paradoxo sem esperança de solução.
Como jamais aceitou a opção de inserir-se no fluxo da vida  casando-se, empregando-se, tendo filhos e mais tarde netos, a morte seria um silencio absoluto, um regresso ao nada, uma mergulho fatal no anonimato denso que nos persegue a todos ao longo de um tempo sem sentido algum.  Melhor não deixar  nenhum registro de passagem tão insignificante e tão desesperadora.  Dai a decisão de tudo destruir como já havia destruído a si mesmo.   
 Se à opção pela chamada “normalidade” a que seu velho pai sempre defendera para ele, resistira com obstinação e teimosia cruel, é por  nela ver o esvair-se de uma vez por todas, sem remissão, do sentido de uma existência artística. No fundo, a despeito de suas desconfianças sobre o valor de seus escritos, Kafka sabia que escrever era a sua vocação. Bons ou maus, seus escritos seriam parte de uma idéia semi religiosa, sustentada com convicção por muitos que aceitam a força do destino, o  “para isto estou aqui”.
Agora, na hora da morte, percebia não haver sido possível realizá-la. Partia como havia chegado ao mundo, solitário, sem herdeiros, em meio à mais completa indiferença da vida.  Não encontrara nenhuma solução plausível para a ambivalência que o matava.
Talvez na morte encontrasse a plenitude da luz neste gesto final de autenticidade suicida. Morria o seu corpo, que sua alma também morresse sem glória. Ele fora, afinal, o grande “culpado”; semeara dor e descompasso, desilusão e tristeza a seus entes queridos.   
Nem neste momento derradeiro parecia-lhe recompor-se a ferida que carregou consigo pelo tempo em que viveu,  aberta pelo difuso mas perverso sentimento de “culpa” . Ferida que só fez ampliar-se com o tempo fixou-se para sempre naquele ano de 1914, vazando em sangue e dor no texto do “ O Processo”.                                   

A “Trilogia” de Felice 

                                                                                                                           [felice_bauer]
Dois anos antes, em 1912 , Kafka viera a conhecer  Felice Bauer.  A partir deste fato trivial -  um jovem rapaz conhecer uma jovem mulher -  verdadeira tempestade existencial desabou sobre ele.
As dúvidas que sempre o haviam perseguido ganharam concreção com a presença de Felice, acima de  tudo pelas promessas de mudança de rumo contidas neste fato.  A partir dai  havia “alguém”, um ser humano  diante dele que, muito possivelmente, poderia abrir-lhe  os braços para o acolher na vida “normal”.
Felice era  uma  jovem estenógrafa berlinense, mulher objetiva, boa moça, de  grande sentido prático.  Visitava seu amigo Max Brod quando Kafka a encontrou por acaso,  numa reunião. Corria o ano de 1912.  Conversaram muito. Felice voltou para Berlin.
Mas dai para frente estabeleceram um forte e denso relacionamento epistolar que levou Kafka a pensar, “definitivamente” , em resolver o seu dilema. Com a segurança própria dos inseguros, “optou” pelo casamento.  Mas a ambivalência não o deixou. Ao contrário. Ganhou força demolidora e densidade perigosa já neste mesmo ano, levando-o à busca de algum tipo de  catarse pessoal.  Destarte,  abandonou  o texto em que trabalhava até então, a novela “Amerika”, para escrever  outros dois,  cuja elaboração e principalmente temática, estavam mais de acordo com a tensão de seu espírito. 
Foram eles as  “ A Metamorfose” e a “ A Sentença”.  





  “A Sentença” principalmente, foi o que mais o agradou.
Tomado de inspiração, envolvido por uma espécie de êxtase criativo Kafka o escreveu  de um fôlego só,  numa noite de desespero, sem reflexões, polimento, ou cuidados artesanais, como um jato de luz, quase um orgasmo espiritual. É o que registra em seu Diário (5) .
Quanto à “Metamorfose”, tinha dúvidas sobre  seu valor. Pelo menos sob o ponto de vista  ético e  filosófico. Porque o texto deixava transparecer, em seu envoltório simbólico,  uma apologia do egoísmo. Em carta a Felice, de 24 de novembro deste ano de  1912, considerou o conto “excepcionalmente repulsivo” e mais adiante, no Diário , registra sua “grande aversão pela Metamorfose”(6 ) 

 “O Processo” não se inclui nesta linha de catarse , embora seja um filho maior do mesmo estado de alma.  Resultou  de  atitude reflexiva,  jamais do impulso, como os dois contos anteriores.
Sem embargo, os três formam o que proponho denominar “trilogia de Felice”,  já que tiveram sua fonte de inspiração nos dilemas, problemas e posicionamentos estimulados pelo relacionamento e os compromissos assumidos com a jovem. 
Seu exemplo negativo da “normalidade “ que tanto o desgostava está na descrição da vida e morte de  “Gregor Samsa”, o personagem central da “Metamorfose”.
 “Gregor Samsa”, segundo ele mesmo um codinome para “ Franz Kafka”, com os acentos nas mesmas sílabas, é um  atestado de falência e perda. Vitimado pela rotina asfixiante de um trabalho sem graça, ao qual se agarrara  para sustentar  a família, morre como um “inseto”. Tendo-se sacrificado pelos outros  viveu sem viver. Sua doação de si mesmo não foi sequer reconhecida. Morreu abandonado por todos.
O pior é que, na verdade, a família  não precisava deste sacrifício. Depois que se foi, “varrido” da existência  pela “vassoura “ da indiferença,  os que dele dependiam encontraram respostas satisfatórias. Passaram a solucionar seus problemas. A inutilidade do sacrifício tornou-se ainda maior pelo vazio absurdo que envolveu  sua morte.
Parecia que Kafka, com este texto, estava dizendo a si mesmo e à sua familia: “vejam bem, para  que exigem  meu sacrifício num trabalho sem graça e sem sentido, como o quer meu pai e, no fundo todos vocês da familia, se vocês na verdade podem resolver as questões triviais da vida sem a minha insignificante colaboração?  Não irei ser um segundo “Samsa”. Seguirei minha vocação de escritor”.   
Por isto o conto lhe pareceu, mais tarde, uma apologia do egoísmo.
Tampouco lhe seria possível aceitar as vacilações do “Bendemann” da “A Sentença” . Tratava-se de um indeciso, de um  vago. Ao passo que ele, Franz Kafka, estava perfeitamente decidido a ser um escritor. 
 “Bendemann”, outro codinome para Kafka, é um jovem que permanece perdido em suas proprias ambivalências. Não resolve seu drama hamletiano. É tudo o que Kafka sempre fora e não desejava mais o ser neste ano de 1912: continuar a flutuar entre a dúvida e a certeza, entre o e ser ou não ser. (7)
No conto, é devido a esta ambivalência jamais resolvida, que Kafka o condena ao desaparecimento. Parecia-lhe muito mais adequado o caminho seguido pelo “amigo” de Bendemann.  Este “amigo” foi quem  deixou  tudo para trás, emprego, familia, amigos e seguiu  “para a  Russia”, símbolo de isolamento e distância, absolutamente só, “enfrentando revoluções “ ,em busca de si mesmo. Para realizar sua vocação decidiu-se a enfrentar a tudo e a todos.


                            Normalidade e Ética

“ O Processo”, escrito em maio ao drama de suas relações com Felice, em 1914, tem alcance e objetivo próprios.  Transcende este trauma  pessoal e se insere na categoria de uma meditação bem mais ampla sobre  a condição moral do homem envolvido pela trama de valores “normais” que caracteriza a sociedade tecnocratizada moderna.
Seu impacto foi profundo , embora por razões distantes do que Kafka pretendia ao escreve-lo. 
A verdade é que “ O Processo “ mexe conosco. Sua leitura perturba. Seja  qual for o ângulo interpretativo, os leitores são levados a refletir. O texto “ morde e espicaça “, nos atinge  “como um suicídio ”,  único sentido para  um livro ser escrito.  (8 ) Estimula o  pensamento  sobre a vida, não importa que seja em relação à  vulnerabilidade do indivíduo isolado ante o destino e o poder, ou como  uma das mais inquietantes críticas  aos valores do homem comum. É um bom exemplo do estilo kafkiano, jogo sutil de simbolismos nebulosos,  belos em sua proposta enigmática. 
Somos todos  vitimados pela “astúcia da razão” . Herdeiros de milênios de desenvolvimento tecnológico, vivemos numa sociedade de mercado, livre e competitiva, onde cada qual, a seu modo, busca  seu espaço. Estimulam-se comportamentos  que sublinham a perfídia e a hipocrisia  para  escalar socialmente .
 “ O Processo” condena  a patologia desta “normalidade”, a ética da existência “normal” onde todos somos culpados justamente por considerá-la “normal”.   
Tal exegese, bem o sabemos,  foge dos cânones aceitos pela crítica. O  mínimo que se pode dizer desta forma de interpretar  o “ Processo” é não ser a interpretação dominante. Embora não tenha escapado á  perspicácia de alguns críticos. No Brasil, Danilo Nunes aborda o tema por um ângulo bem próximo ao que tentamos desenvolver ( 9)
 Sua parte realista, entendida como a verdadeira, está  descrita  nos procedimentos normais do mundo jurídico.  Sob este ponto de vista a novela trata de caso  comum.
Um indivíduo só, diante do poder, enfrenta uma acusação que julga sem pé nem cabeça. É preso e submetido a um “processo” alongado no tempo, burocraticamente tortuoso, cujo resultado é fatal. Acaba na  condenação á morte.
A descrição “realista” é a de uma “Corte” que envolve o indivíduo incapacitado de se defender adequadamente. Como tantos. Como quase todos os dias. Destarte,  apresenta-se para muitos intérpretes  como a voz da precária justiça existente,  perseguindo e demolindo o acusado vítima de  erro judiciário. Tem sua burocracia, seus juizes como qualquer Corte. Ante ela os advogados apresentam razões. Seus funcionários agem como todos os funcionários. Há em toda a atmosfera algo de bocejante, indiferente, fatal. 
Esta interpretação  tem sido a preferida da maioria dos leitores. Ajusta-se ao que o mundo veio a testemunhar com o advento do stalinismo e do nazismo, a  tranqüilidade sedativa e fácil com que o Poder procede contra o indivíduo desvalido.  A chamada “banalidade do mal.” Kafka seria  o “ profeta do absurdo” por antecipar, em 1914,  o que milhões vieram a sofrer a partir da década de 30.
Tudo o que nos descreve, na epopéia sinistra de “Joseph K”, é parte da engrenagem burocrática da vida. Existe, está diante de nós,  quando nos acontece enfrentar e nos defender de eventuais acusações do poder anônimo, a desabar sua fria indiferença  sobre nós.
[ max-brod]  
Foi o poeta Max Brod, depois da morte de Kafka, quem organizou o material esparso, ordenou  capítulos e acrescentou coisas que, a seu ver,  tornariam mais claro o texto. Foi ainda Max Brod que lhe deu o nome: “ O Processo”. Nem isto Kafka havia feito.
O costume dos adendos por isto mesmo vingou. E a  clareza pretendida se perdeu em brumas.
Um estudioso de Kafka,  Eric Lawson  Marson, em sua erudita e volumosa crítica do livro,  anotou  cerca de 1778 variações de texto entre a primeira edição alemã de 1924 e  edições posteriores, devidas a correções editoriais e adendos. (10)
                                       O desenlace com Felice
 
 [kafka e felice]

Quando começou a escreve-lo, Kafka tinha acabado de romper seu relacionamento com Felice Bauer. Era um relacionamento bem estranho, porque, como vimos, tinha caráter  puramente epistolar. Nele não entrara sexo.  Viram-se pouquíssimas vezes. Kafka vivia em Praga, Felice em Berlim. A força do amor, como já insistia seu contemporâneo Marcel Proust  está na capacidade de excitar a imaginação. Foi o que ocorreu .  Kafka o reconhece:  “uma haura de pensamentos rodeava a figura de Felice”, registra ele em seu diário(11). O mesmo devia ocorrer com a jovem.  Por isto, pela distância, pelo sonho, avançaram tanto que chegaram a pensar e concordar  com o casamento.
A  família de Felice sentiu-se à vontade para , diante do que ocorria neste ano de 1914 e a partir das evidências anteriores, organizar uma festa em Berlim, com a presença de todos. Queriam celebrar o noivado do advogado tcheco com Felice.
Não houve festa.
Para surpresa geral, lá mesmo, em Berlim, para onde Kafka embarcara com o objetivo de convalidar a relação e casar-se, foi onde  rompeu-se  o compromisso.
A seqüência foi atropelada por acontecimentos dramáticos. Kafka passou  a ser duramente questionado, um verdadeiro “processo” de julgamento familiar, no hotel onde se  hospedara, o Askaniche Hof. Tudo com a presença de uma “testemunha”, Grete Bloch, a maior amiga de Felice .
Era difícil entendê-lo, mas  Kafka  teria de decidir-se. Estava com cerca de trinta anos, a idade que atribui a Joseph  K seu personagem central na novela.  Não podia casar-se, com emprego, mulher, filhos e fraldas e seguir com sua vocação, a literatura. Em Berlim, ante a pressão dos fatos e a realidade que se desenhava à frente,  decidiu pela solidão.
A cena no hotel marcou  momento importante , numa hora de vergonha e desespero. Kafka estava sendo julgado pelo “tribunal da normalidade”. O fato pode ter servido como  inspiração, por analogia inversa,  para “O Processo”. 
O rompimento gerou conseqüências cruéis. Coincidência ou não, o pai de  Felice  morreu de um ataque cardíaco pouco depois, em novembro de 1914.    
Seguramente Kafka não teve culpa neste desacerto. E, afinal, tudo o que fizera não havia sido por premeditação, por mal.  Na vida, no entanto, o mal  tem muitos disfarces.  Não raro, assume a figura do Bem, fazendo-nos entrar em seu território exclusivo  de modo “inocente”.  
Kafka tomou esta complicada decisão com coragem porque foi a Berlim e o fez face a face. O complicado é que tudo fora consequência de acreditar numa vocação da  qual, no fundo duvidava.  Ouvia sempre a voz  acusatória do “pai metafísico “ da “ A Sentença”, a indagar, entre irônico e provocativo: “existe mesmo este amigo na Rússia? “ 
Isto é, você tem talento que justifique tudo isto ou trata-se de  um jogo infantil de ambigüidades mal resolvidas ? Neste caso sua conduta  o faz “ diabólico em sua inocência” é como conclui o “pai”. (12 )
Por que seria “diabólico” o jovem Bendeman nesta decisão de casar-se, decisão “normal”,  que agora  comunicava ao “pai” e , por carta,  a seu “amigo na Russia”?
O próprio “pai”, seu “alter ego” , a vociferar irado, no quarto “escuro”( o “escuro” é outro símbolo muito usado por Kafka) ,  onde se trava o diálogo fatal do jovem Kafka consigo mesmo responde : porque uma fêmea “sacudiu a saia para lá e para cá”, por isto você “abandona seu amigo na Russia”,  isto é , sua vocação,  para casar-se, inserir-se na insossa normalidade da vida.
Já que um  impulso animal  sufocava  sua “vocação”, o “pai” o condena a morrer “por afogamento”.
Há muitas formas de sermos  “diabólicos em nossa inocência”. Sem pensar, muitas vezes sem querer, criamos embaraços, dramas e até tragédias a quem é por nós afetado, filhos, pais, amigos, colegas, noivas, mulheres, amantes, etc... 
Se assim é, inútil nos orientar pelo interesse alheio. Não podemos captá-los com precisão, muito menos entendê-los.
 A justificativa kafkiana de sua vocação está na “ A Sentença”; a do egoísmo para segui-la,  como já o notamos,  está na “ A Metamorfose”. Interpretação que não escapou à perspicácia de Leo Gilson e de Sergio Kokis (13 ) .
Kafka parecia decidido finalmente. Não iria ser nenhum “Gregor Samsa”.

                                      A fraude decisória

Infelizmente, se para nós nada é linear e simples, imaginemos como os fatos da vida repercutem num homem complexo e sensível como  Kafka . 
 Causando estragos morais graves para si e para os outros, sendo “diabólico em sua inocência”, Kafka tentou, pelo menos, aceitar como verdade a ambivalência inerente à  dialética do viver.  Somos sempre culpados.     
A temática dominante no “O Processo” tem estas características. A “culpa” não pode ser  negada.  Ela está implícita na vida.  Viver é acumular “culpas”, provocar desacertos, por ação ou inação.  Mas, pelo menos um ser moral está ciente de como age e de como não é possível deixar de o fazer devido ao jogo imprevisto, indiferente e fatal das circunstâncias que se cruzam sobre si mesmas. É um problema de estar filosoficamente ciente das muitas ”culpas” que a vida nos impõe. 
Para chegarmos a este grau de consciência sobre as resultantes de nossas ações, teríamos que “despertar” para este tipo de verdade.  Mais que isto, teríamos de “completar” este “despertar” , reconhecendo  os limites do erro, pelo menos  para tentar  minimizá-lo.
Só desta forma seria possível, como se indica a Joseph K no “ O Processo”, atingir a “absolvição temporária” ou o adiamento da “pena” por toda a vida, já que “absolvição completa”, como lhe diz Titorelli , o pintor, um dos muitos agentes da “Corte” que tentam esclarecer a “escuridão” de Joseph K,  seria  tarefa impossível para o homem normal, imerso no fluxo do viver, com suas tensões,  obrigações e decisões.   
Não há “inocentes”. Mas pode haver um aumento espantoso desta “culpa” se  a negamos por considerar  a vida normal um paradigma de decência e razoabilidade.  Neste caso, por  “vivermos como todo mundo“, “sem fazer nada de errado “ como diz Joseph K, estaríamos julgando como “certo” o nosso equívoco. Caso de todo o mundo, dos que sem o saber iniciam na rotina das vidas a jornada da perdição. Seria  evidente a “culpa máxima” justamente porque o homem espiritualmente opaco, obediente  á “lei” da sociedade, sente-se  confortável com o que faz. 
O problema da auto consciência é colocado às vezes. Comumente ocorre em nós como resultado de alguma crise. Gera remorsos, auto flagelação espiritual, arrependimentos, às vezes a convulsão do pranto e da dor. Mas a verdade é que não  dura  e quase nunca gera conseqüências para nos transformar. É sempre muito difícil o verdadeiro  “despertar”. E seguimos com nossa vida, entre trancos , risos e sacudidelas dos fatos.   
Já se disse que o sorriso da plenitude é um privilégio do imbecil. Talvez seja correto, mas suspeito que nesta imbecilidade esconde-se a sabedoria de uma espécie fugaz cujo destino é o anonimato e o desaparecimento eterno. Por isto a imensa maioria é protegida contra o flagelo do pensamento crítico. Vive a  vida com tanto poder de convicção  que fica imune á razão e à não razão, imune à insegurança metafísica, preservada de dúvidas e angustias existenciais. Escapam.  Jamais entre os milhões de seus componentes encontraremos um único “Joseph K”.   Morrem sem saber que viveram, felizes consigo mesmo, aceitando os fatos “como evidentes por si mesmo”. 
Seriam os  “ verdadeiros habitantes da terra”. Entre eles estão os camponeses indicados por Kafka em seu Diário ou  os  “normais” do mundo  urbano  que andam por ai, aos turbilhões. Atravessam  seu ciclo de vida  imunes ao “saber corrosivo” da filosofia, da literatura, indiferentes ao amor, à história, à arte, ao assombro  de Pascal ante a grandeza do Cosmos  e  a inexplicabilidade  do Acaso.  Na mesma categoria de irresponsabilidade existencial   estariam  os profissionais , os especialistas inseridos na classe média vulgar. Todos eles  seriam   incapazes de  “ouvir as trombetas ressoantes do Nada” (14 )
A conclusão é inevitável. Somente para os poucos dotados de sensibilidade complexa  a “culpa’ é um potencial de dor que evolui em silêncio sobre nossa alma, como um fantasma incômodo.
Felice saiu da vida de Franz Kafka  ali pelo ano de 1916, princípios de 1917. Mas a ambivalência e a “culpa” não o abandonaram.
Sua morte prematura decorre da irresistível pressão que a família e a sociedade impunham a um artista sensível para  deixar de ser artista e transformar-se no que Dostoievsky chama , ironicamente, de “ o eterno marido”.
Sua biografia registra ainda algumas outras tentativas de inserção na vida comum, depois do episódio de Felice.   A pior delas, com  conseqüências mais cruéis, a revelar o que de mais “demoníaco existe na inocência” do agir por impulso, sem pensar, seguindo o apelo animal do “agitar de saias” foi o caso com a tuberculosa  e tímida Julie Wohryzek.  Kafka a encontrou numa estação de cura natural, aproximou-se, cortejou-a, acabou por oferecer-lhe casamento.  Não era romance epistolar. Estavam um frente ao outro, tudo de corpo, olhares, toques e falas reais.   
Pois um dia, sem razão alguma, Kafka abandonou a pobre Julie, como o fez com Felice . A moça  acabou sucumbindo á depressão. Teve um fim trágico. Morreu pouco depois.
  Este episódio é pouco conhecido na biografia de Kafka, mas é um dos mais reveladores do caráter  “diabólico”  da sua indecisão. De não ter logrado, jamais, resolver seu drama hamletiano.
Ao final de sua vida, ante a presença da morte iminente,  lamenta o destino que, de certa forma escolheu para si. Lamenta haver-se entregue a sua “missão”. Percebe a si mesmo como  um  homem que se aproxima de sua extinção definitiva “sem antepassados, casamento, herdeiros, desejando irresistivelmente antepassados, casamento, herdeiros, mas todos demasiadamente afastados de mim. “  (15)
A vida “normal” do casamento agora é reconhecida em seu valor humano. Mas “estaria fora de seu alcance” ( 16 ) Contempla com  nostalgia  a oportunidade perdida, a de um  “ avô que sorri para seu neto com a boca desdentada” (17) .Sucumbiu à  síndrome do indeciso. A culpa pelo que poderia haver sido e não foi.
O artista está sempre  em suspensão precária sobre um abismo de dúvidas que ameaça sugá-lo para as profundezas do tormento a cada instante .  Não é e jamais será, um “verdadeiro habitante da terra”.  
Kafka  buscava escrever   “ como forma de oração” para exprimir o “überlegen”, isto é  a ponderação, o devaneio, a “janela”  aberta diante de si, para meditar, superando o pensar rotineiro. A “janela” é outro símbolo kafkiano.  
Notamos acima que desde muito jovem insistia com este estilo. Sobre o assunto escreve a seu talentoso amigo, o jovem Oskar  Pollak em fins de 1903, princípios de 1904. Ali já definia a verdadeira literatura como uma forma de “suicídio”, um “machado a romper o mar de gelo que existe em nós”. (18).
 Como Kafka reconhece, em carta a Felice, de 10 de junho de 1913, o  que  se espera deste tipo de literatura  é que seja “entendida ” pela intuição de vida de cada um de nós.  Esperança que prova a todo instante, sua cruel futilidade.


                                       A Novela de 1914

Estamos agora em condições de tentar uma interpretação mais completa sobre “O Processo”. Não sabemos como Kafka  denominaria este texto que vinha escrevendo neste ano de 1914. Max Brod decidiu pelo título que acabou consagrado porque, segundo ele, Kafka assim se referia ao trabalho em conversas de amigos. (19 )
Parece correto. Trata-se realmente de um “Processo”.  Mas um tipo bem peculiar de “processo”.
Desde o início Kafka tem o cuidado de deixar claro este fato.  “ Você não está sendo preso como um ladrão o é “ , forma como se abre a conversa entre a autoridade e  “Joseph K” explicando a ordem de “prisão”. (20)  Destarte,  somos conduzidos desde logo ao complicado  universo da dimensão simbólica por um autor que  trabalha sobre a matéria prima do enigmático.
A partir desta cena inicial o texto  nos leva por caminhos pouco ajustados ás interpretações dominadas pela preocupação  realista.  O que propõe é algo bem difícil: a  catarse da meditação conjunta. Autor e leitor são levados por ele a  caminhar  em torno de críticas, acusações, protestos e denúncias, movidos pela consciência de quem vive, contra a vida que se vive. É um bom  exemplo do estilo que veio a ser a marca da escrita  kafkiana. Seu  objetivo, sem nenhuma dúvida, é o  de  “romper o mar de gelo que existe em nós”.  Colaborar com nosso “überlegen”. Projeto quase impossível, pelo menos para a imensa maioria dos leitores.
Ante  suas páginas são poucos os que se envolvem no verdadeiro “processo” de auto critica, levados a confrontar sua própria “consciência moral ”.  No entanto, Kafka tem por objetivo  fazer da literatura algo que nos eleve a um plano superior.  “ Só posso ter felicidade se for capaz de elevar o mundo ao puro, ao verdadeiro, ao inalterável”. ( 21 )
Pelo menos no  “ O Processo” cumpre inteiramente este objetivo.  Leva-nos a refletir sobre  a culpa difusa que se revela aqui e ali, no lusco fusco da intuição crítica, pela descrição do tipo de vida que Joseph K, um homem comum,  leva em sua existência cotidiana.  E de como reage a ela, já que este tipo compõe a tecedura da vida  de todos nós.

                                      ****

Como é esta vida ? Joseph K é descrito como um ser obediente ,  passivo;  jamais lhe ocorre questionar o “Molde”. Aceita as implicações decorrentes. Especialmente as que se constroem  em termos de  inter relacionamento humano.
O que o perturba é ter tido a infelicidade de “despertar”. Por isto resiste. Envolvido em brumas e em dúvidas perambula entre o pesadelo da culpa e a luta para contestá-la. Quem “desperta” não mais permanece no universo moralmente sedativo de um “verdadeiro habitante da terra”.
A novela traça o largo caminho deste  “despertar” a meias, que jamais se completa pela resistência desesperada de sua vítima. Há uma luta de morte  travada pelo personagem para sustentar a “verdade”  da vida que sempre viveu. Por isto  afirma, de modo obstinado,   não saber do que o acusam.   Afinal ele “nada fez de errado” . Viveu e continuava a viver a vida de todo o mundo,  como repete sempre, de modo insistente, ao longo de toda a novela.
Condenado por um lampejo da consciência ética, este “inocente” intui , de forma nebulosa , mas intui,   o erro básico de sua  vida. Por isto, ao fim, decide  caminhar  voluntariamente para a morte no belo  paradoxo em que Kafka faz o seu personagem “inocente”  colaborar e não mais enfrentar, os dois “verdugos” escolhidos para matá-lo. 
E o faz por reconhecer ser tarde demais para qualquer acerto correto. Não havia  mais retorno na insistência que o levara a negar sua culpa, a não querer  “despertar” .  Sua última oportunidade se perdera nas sombras da Catedral vazia, quando o “padre”, um outro membro da “Corte”, tentou um último esforço.  Joseph K, em sua teimosia ontológica,  nada entendeu. Escapou-lhe o sentido da belíssima e conhecida  parábola, “ Às portas da Lei”.
O padre narrou-lhe a parábola. As portas da Lei  estão lá , para todos nós. São individuais, guardadas por guardiões ferozes, os vigilantes subjetivos de nossa consciência. Cada um  tem a sua.. Só podemos penetrá-las se entendermos o sentido da “Lei”, realizando a auto crítica de nossa vida. De nada vale esperar, religiosamente, obedientemente,  para ser admitido. O formalismo de uma ética vazia de conteúdo real não garante,  a ninguém, passar pelas “portas da Lei”. A espera é inútil. O guardião não nos abre a porta e consumimos nossa vida sem sermos admitidos.  Quando morremos as portas são fechadas para sempre. 
Joseph K reage à parábola de forma errada. Ao invés de ser estimulado a uma revisão de sua vida, reconhecendo a “culpa”, protesta inocência. “Trata-se de um erro. Como pode alguém ser culpado? Somos homens, simplesmente homens, iguais em nossa condição”. “ É verdade”, responde-lhe o padre, arrematando com a frase culminante do livro: “ é o que costumam dizer todos os culpados” ( 22 ) .
Joseph K “ ignora a natureza da Corte” que o processa  (23 ). Teima até o fim  em proceder racionalmente, como um advogado, em busca de contradições na estória narrada pelo padre que o despede, desalentado, para seguir seu caminho fatal. Sua última chance se fora.
O Processo” é , portanto, a narrativa de uma  condenação filosófica.
Joseph K   é o ser do cotidiano. Nós o vemos a todo momento. Está sempre por ai, a  competir,  intrigar, manipulando espertezas, desfrutando de prazeres e vantagens pessoais, como se a história da vida começasse e terminasse nele, sempre  indiferente ao próximo. Vive em pleno sonambulismo moral. Sacudir eticamente um homem  como este é proeza de dinâmica psicológica que não se verifica  com freqüência.  Dai sua  paradoxal grandeza .
Joseph K se nos aparece como um ser  humano  que enobrece, com seu “despertar” dramático,  a pequenez das vidas comuns.

                                      A difícil exegese kafkiana
  
A maioria dos intérpretes do “ O Processo” não percebe  a grandeza do drama de Joseph K.  Muitos são os que se acomodam   com interpretações triviais. 
 Convenhamos em defesa destes intérpretes:  não é fácil entender o jogo nebuloso do simbolismo nem as motivações recatadas de Kafka,  que nem com os amigos conversava sobre o sentido de sua arte.
 Quando um grande crítico como Walter Sokel afirma ser o “ Processo a única verdadeiramente opaca dentre as grandes obras de Kafka “ nada mais faz que refletir a perplexidade de muitos ante o inusitado (24 ) .
Além do mais é falso. Toda a obra de Kafka traz a marca da “opacidade” e “ O Processo”, ao contrário do que diz Sokel, é uma das mais claras.  Pelo menos, ao contrário de tantos outros textos, nela há uma linha de seguimento, um enredo,  levando da intimação à condenação.
Entender  a novela como  “ biografia espiritual revestida de disfarces metafísicos” talvez seja ir mais longe que a maioria, mas ainda revela preocupante incompreensão sobre o significado do texto e , principalmente, da mensagem kafkiana. (25 ))
Há sem dúvida um drama biográfico . É coetâneo da novela. Com importante diferença.  A “culpa” denunciada nada tem de individual. É um fenômeno da condição humana no ritmo moderno de viver a vida de todos os dias, atingindo a quem “desperta”. Poucos são os que passam por este “ processo”.
Com sua novela Kafka tenta diminuir o número dos sonâmbulos morais. Tenta sacudir o homem comum pela gola de seu casaco, golpeá-lo na alma e na sensibilidade, discutir sua “lei de viver” para “elevá-lo a um plano mais puro. “ 
A “lei” do viver é a lógica da carreira,  da  burocratização radical da vida ,  a que nos apresenta o jogo da competição no  teatro da existência pública. O que existe para ordenar o comportamento ante si mesmo e o próximo é a representação do “papel social” aceito sem questionar .
Difícil, muito difícil, dentro deste quadro de referências  aceitas, ser sensível á alienação profunda de um modo de “ser” que não “é”, porque só possui forma exterior , sintetizando o simbolismo da igualdade entre todos os vazios.
A má interpretação da novela, portanto é compreensível. Poucos conseguem o distanciamento necessário,  mergulhados que estão no chamado “mundo-vida”como o denomina  Husserl.   Acorrentados á ética do cotidiano não conseguem ver nenhuma  culpa numa vida absolutamente “normal”. Aceitam como corretos seus protestos de inocência.                   
Dentro desta perspectiva a leitura é conduzida para  perceber  no “ O Processo” uma “sátira á burocracia “ .
“ É isso que ele é. Negar esse fato,  advogando  para o livro somente sentido metafísico, é absurdo. As cortes são apenas o que são e sugerem simplesmente o que fazem” – (26 ) .
Este é o tipo mais popular de analista do “ O Processo”.   Muitos dentre eles são divulgadores famosos da obra,  produtores de filmes, como  Orson Welles,  um dos primeiros a transpor “ O Processo” para o cinema.  Ganham o público, sem dúvida,  mas se  afastam  do sentido real da obra.
 Na novela  a “Corte” kafkiana  nada tem de  “Corte comum, de Corte como ela é”.  Não se conhece nenhuma Corte que só se reuna aos domingos, que tenha audiências em lugares estranhos que mais parecem arenas de circo, que trabalhe em sotãos escuros de prédios velhos, que tenha todos que entram em contato com o acusado como seus auxiliares, inclusive crianças.
Sem entender o simbolismo de todo o conjunto é difícil se posicionar ante a mensagem kafkiana.
Domingo é um dia de  ócio. Longe do trabalho e das tarefas obrigatórias. Usando desta ociosidade temos condições de refletir. Os “sótãos” escuros , lá no alto, são lugares adequados a uma consciência errante na vastidão enevoada em que transita. O mesmo ambiente de símbolos complicados está conosco desde o início, como as velas e candelabros, as blusas soltas na cama, simbolos eróticos que revelam a “culpa” dos impulsos animalescos de Joseph K, na convivência cotidiana com sua vizinha de quarto.   
A condenação já está implícita no “processo” que se inicia ao atingir os trinta anos.  Implícita no “despertar” do acusado.  Razão pela qual os guardas que o prendem o mandam vestir-se “de preto” para ir ao encontro do Inspetor.  A ordem  soa  com tons  perturbadores porque Joseph K associa o fato a uma condenação capital.  Responde: “ mas não é condenação de morte ainda” ( 27) . O “ainda” é bastante expressivo, indicando o universo cifrado em que se vai  mover a novela.  
Completamente fora do contexto realista de quem enfrenta um caso de erro judiciário, antes sequer do primeiro inquérito, Joseph K pensa em “suicidar-se”, aproveitando-se de um descuido dos guardas. (28 ).  Pela janela, sempre a “janela”,  uma senhora idosa, símbolo maternal, observa a cena em silêncio, ao lado de um homem igualmente idoso, sem dúvida imagem paterna.   
Por que “suicidar-se” antes de tudo começar ?
O fato nada tem de realístico. Envolve mais uma mensagem cifrada. O  “despertar” significa  algo impossível de suportar psicológica e moralmente. Dificil continuar a viver a nossa vida “normal” depois do “despertar”. Daí o ímpeto do suicídio.  
Por outro lado, sua  “prisão” tem toques especiais como lhe diz o “Inspetor”. Não é “prisão” coisa alguma, podendo prosseguir com suas atividades de sempre.    
Mais ainda. A inquirição  inicial é um escândalo de absurdos  com dois guardas vestidos de forma “irregular”,  entrando pelo quarto a dentro de Joseph K bem cedo pela manhã, em meio a um diálogo complexo, sob as vistas curiosas do referido casal idoso; a primeira inquirição é ainda mais absurda. É feita por um “Inspetor” no quarto da vizinha de Joseph K,  levando com ele três funcionários do Banco com o objetivo explicito de “ajudarem”.
Ajudarem o que, exatamente ? Pela janela entreaberta continuam a contemplar a cena a mesma senhora,  o mesmo homem de jeito paterno, agora  acompanhados por um tipo enorme, espáduas largas, possante, de barba ponteaguda, ruiva, que acaricia com vagar e gosto.
É evidente a simbologia fálica, já presente no caso da “maçã “que Joseph K come ante os guardas.  
Pior ainda para a tese da “ Corte como ela é “, realística e comum na pratica de suas injustiças e perseguições,  sátira ao “autoritarismo moderno”,   é a cena do local deste inquérito, o quarto da vizinha, a jovem Fraulein Burstner, codinome evidente para  “Felice Bauer”. Kafka descreve este local. Está fora de qualquer padrão aceitável para uma “inquirição” judicial. Sua descrição nos dá inúmeras  indicações da simbologia sexual. Da não resistência de seu personagem ao “sacudir das saias”.  
À  época de Kafka  esta simbologia, já presente no caso da “maçã”, era bem discutida e conhecida pela psicoanálise freudiana. 
Dai para a frente a Corte é cada vez mais surrealista terminando com o veredicto condenatório feito, ... numa Catedral !
Se isto é uma Corte como todas as outras,  não sei exatamente de que estes curiosos interpretes estarão falando.   
A novela abre-se em desafios e a “culpa” começa a tomar forma a cada página lida. A relação com o trabalho, com as mulheres, com os amigos, com a família, tudo vai surgindo diante do leitor. Infelizmente o capítulo das relações com a mãe acabou sendo tratado por Max Brod, o organizador do texto, como anexo. Não foi incorporado ao  corpo da novela. Ajudaria a formar um juizo sob o tipo de vida que levava Joseph K e o tipo de ligação afetiva que mantinha com todos os que o cercavam.
   O tratamento dado aos subordinados é um dos muitos fatos a serem  notados. Os três homens que presenciam o primeiro inquérito para “ajudarem”,  têm nomes significativos. Um judeu, outro, tcheco, outro alemão, as tres nacionalidades que viviam no mundo de Kafka.  Representam “todos” os que  convivem com Joseph K. Rabensteiner, Kullich e Kaminer , os três colegas levados como testemunhas pelos oficiais da Corte provocam o protesto de Joseph K, não pelo fato de estarem por lá, num mistério de pouca explicação “racional”. O protesto, vejamos bem,  é pelo “status” social dos três.
 “ Colegas, como? São apenas funcionários subalternos”  é o que vocifera, irado, Joseph K,  ante o que lhe parecia um menosprezo do inspetor à sua posição profissional e social “superior”. ( 29) .
A mensagem nos parece clara. O que conta é o status adquirido e não o ser humano . Mais ainda : “ colega” exige respeito; “funcionário subalterno” não. Os primeiros são “gente”, os segundos são “coisa”. A hierarquização era tudo para este  carreirista.
Não ficam por ai seus valores e preferências. Uma vez por semana visitava uma prostituta, Elsa. Jamais demonstrou qualquer interesse humano pela jovem garçonete que fazia alguns “programas” para melhorar sua condição financeira. Não se interessava por seu lado humano. Vivia a noite como vivia o dia, para o trabalho, a diversão, o sexo e a bebida.
Sua ética começa a se desenhar de forma evidente desde o início da novela.
No Banco tratava de agradar os chefes. Armava ardis e contra ardis na  luta pela carreira e por promoções, contra seu grande rival, o assistente de Diretor. (30).  Competia à força de malícia,  acima de tudo por clientes.
Esse capítulo, de tão importante, Kafka pretendia desenvolvê-lo á parte, mas deixou-o sem completar ( 31) . A forma como encarava as mulheres era típica: objetos de prazer, expressões de sensualidade irresponsável e lúdica, nada mais. 
 Quando Kafka desloca a inquirição de culpa para o quarto de Fraulein Burstner, a vizinha, o faz com evidente intenção simbólica porque não há razões objetivas para isto. Nenhuma “ Corte como ela é” procede desta forma. São razões morais que ele deseja sublinhar. 
A simbologia fálica do quarto é o recurso usado.  Blusas soltas pela cama, castiçais erectos que o “inspetor” trata de fixar sobre a mesa, bem à vista de todos, cama,  sombras convidativas, ali Joseph K é inquirido. Não reconhece seu impulso erótico descontrolado em relação à jovem solitária que para ele não é um ser humano, mas simples fêmea disponível.  Não reconhece coisa alguma.
Não ouve ou não consegue entender o que lhe diz o “inspetor” no curso desta primeira inquirição : “pense mais em sua vida e não faça tanto empenho em provar-se inocente”( 32 ) .
 Tudo falha. Joseph K não  completa seu “despertar”.  E quando, acabado este primeiro encontro com a “Corte” busca desculpar-se com a moça pela invasão de seus aposentos, acaba por não resistir e passa a atacá-la sexualmente.
Segundo o texto kafkiano, no decorrer da conversa  “K  segurou-a, abraçou-a corpo no corpo, beijou-lhe os lábios, depois por toda a face. Finalmente baixou o beijo ao pescoço, subiu pela boca a dentro metendo os lábios pela garganta a ali “revolveu-os por longo tempo” (33). 
Podemos imaginar o susto pálido da jovem, assaltada desta forma, sem esperar, fisicamente dominada pelo macho mais forte.  Se este não é procedimento eticamente condenável ignoro o parâmetro usado para absolvê-lo de culpa.
A insistência de Kafka, no texto, com o comportamento  sexual é um produto da época. Lá pelo início do século XX, recém saído o mundo da época vitoriana, quando as mulheres, por serem consideradas inferiores, nem sequer votavam em nenhuma das grandes democracias, nem na Inglaterra nem nos EEUU, a repressão sexual era comum.
De acordo com a Biblia, a mulher era a tentadora, a que levava o homem ao absurdo da irracionalidade,  a verdadeira “serpente” a brandir como arma preferida sua “maçã” vermelha.  Mulher e pecado, sexo e nojo se constituem em muitos comentários de Kafka em seu Diário, a ponto de relembrar, anos depois e relatar com verdadeiro horror  encontros que teve com uma garota quando estudante.  Fala da pobre garota como seu  “cruel inimigo”; fala de “gestos repulsivos” etc... afirma que a simples idéia de uma “lua de mel” o “enche de horror” ( 34 ) . Diz que “ as mulheres são perigos que ficam á espera do homem com o objetivo de arrastá-lo para o meramente finito.” A mulher teria mandíbulas de fera e armadilhas insólitas. (35 ) ; só conquistando o “ medo a vergonha e a pena poderia satisfazer o sexo”. (36) .
 Nem todos os grandes homens são grandes em tudo. Kafka falhava neste aspecto.  O lado felino da mulher, as “saias se levantando”  é  uma de suas maiores e mais descabidas preocupações éticas.
Kafka entendia a “cama” como a grande “arma” da mulher, a única á sua disposição. A mulher seria o que sua imagem bíblica transmite, a “tentadora”, a desviar o homem de seu caminho no eterno e antigo “levantar de saias”. Daí a importância da simbologia sexual entendida como desvio ético. Somente  por ela seria possível à mulher transformar a cama em “arma”.  
Hoje em dia, neste inicio de milênio, o conceito de pecado se dissolve. E quando existe passa bem ao longe das “camas” eróticas, dos “castiçais erectos” e das “sombras” provocativas.
Não era assim há um século atrás.  Portanto, ter comportamento sexualmente permissivo seria um dos motivos para culpar moralmente Joseph K.  
Mais adiante no texto, em conversa com seu “tio”, sabemos que Josepçh K não visitava a mãe ha muito tempo. Infelizmente o capítulo que Kafka iria dedicar ao relacionamento com a mãe idosa, como o notamos mais acima,  não foi sequer terminado. Permaneceu como fragmento, adicionado a pgs 291-295 da edição citada. Mas dá para ver o vazio deste relacionamento formalizado, mero cumpridor de ritos sociais, quando somos informados que  “ há três anos Joseph K não a visitava” (37 ) . Mandava-lhe uma pequena mesada e com isto dava-se por satisfeito.
Destarte, é  possível interpretar as mudas figuras paternais que testemunham a ordem de prisão inicial como acusação silenciosa e resignada dos pais contra o filho  negligente e egoista.           

                                      O pragmatismo moderno

O problema central do debate  no “ O Processo” gira, portanto, sobre as premissas  éticas que estruturam e legitimam o jogo de ações e reações  humanas  legitimadas pela sociedade moderna.
Por que “sociedade moderna” ?
Porque é a  sociedade que Kafka chama num fragmento de seu Diário de “ O Mundo Urbano”.  (38) -
Havia, na antiguidade agrária, visão uniforme, integrada pelo sentimento religioso da vida. A sociedade de massas do industrialismo a substitui pelo utilitarismo competitivo.  Os papéis sociais legitimados são impostos como modelos a seguir. Não é possível questioná-los sem pagar o preço do ostracismo social. Este quadro legitima a voracidade, o egoísmo,  o uso do próximo como objeto manipulável, o consumismo ,  a carreira como objetivo central á vida. Arcabouço de valores muito pobre para dar algum sentido á existência. Leva o homem pelo rumo da desorientação , o atira ao vazio, à dúvida, o faz deitar-se no divã da psicoanálise, coisa que o homem  antigo estava  bem longe de necessitar. Tudo gira em torno do absurdo, da droga, do crime, da corrupção dos valores. Portanto, não há inocentes. Somos todos culpados que se julgam inocentes.
Um dos diálogos mais interessantes é o travado por  Joseph K com um homem simples, o porteiro, marido da servente do Tribunal. De modo cumulativo, este diálogo revela para o leitor sua desorientação completa. Como o de muitos interpretes do absurdo burocrático , Kafka faz seu personagem travar sua luta contra uma Corte “física” quando enfrentava uma “metafísica”. 
Cansado  de um dia frustrante, com interrogatórios incompreensíveis, “K” pretendeu sair da Corte o mais rápido possível.
“ Quero ir embora, como se chega á porta de saída “?
 “O senhor já não se perdeu ? ” indaga-lhe o porteiro.
 “Mostre-me o caminho” diz-lhe “K.” Ao que o porteiro, revelando sua surpresa,  mostra o caminho por entre portas e corredores.
 “ Jamais encontrarei o caminho neste labirinto” é o que lhe diz “K”. O porteiro, de modo condenatório, replica: “ há só um caminho”. ( 39) .
Ao ouvir esta observação “K” tem “um princípio de desmaio”. É a mesma observação que se vai repetir na conversa fatal com o Padre, na sombria catedral onde é condenado . Só há um caminho, uma porta, feita para cada um de nós atravessar, ao encontro da “Lei”.
“ K”  nada entendeu. Nem no princípio , nem no fim. Mas entreviu sua culpa. Neste momento , com um desmaio, mais adiante com a morte para a qual caminha, colaborando com os dois verdugos.  
Sentindo-se mal na conversa com o porteiro queriam  levá-lo á enfermaria (40 )  . Negou-se. Não desejava  ir mais adiante porque quanto mais longe, “pior para ele” ( 41)  Atribuiu o “desmaio” ao “cheiro” da Corte porque, normalmente, “não sofria nunca destes ataques”. Tudo o que necessitava não era de enfermaria  , era sair dali. Um pouco de ar e um pouco de  apoio para chegar até lá fora. A esse pedido um funcionário observa , rindo, “Vê, diz para a moça, acertei em cheio. É somente aqui que este senhor se sente mal” ( 42 )  Isto é , quando confronta a si mesmo e a sua consciência.
A segunda tentativa da “Corte” termina em fiasco. “K” decide passar os domingos ”em tarefas mais confortáveis” (43) . Não se consegue penetrar nesta consciência tortuosa e difícil.  “Joseph K” iria caminhar para sua condenação.
É no capítulo seguinte que se completa o significado de “ Frau Burstner” o alvo de sua cobiça sexual. Depois do incidente a  moça se transfere de pensão, é claro.  “ Joseph  K” contempla seu quarto vazio, percebendo, ao mesmo tempo os olhares de duas pessoas que acompanhavam a cena. Nesse momento, ao se sentir observado, com olhares “ que lhe pesavam “, “escapou para o seu quarto tão rápido como podia, mantendo-se sorrateiramente espremido contra a parede enquanto caminhava”.  
O que Kafka nos descreve é a atitude de um “criminoso” que trata de escafeder-se, enquanto pode, agarrado á parede, silencioso , para o fundo de seu quarto. 
Deve ser notado que, com este capítulo, “F. Burstner” desaparece do texto. Já cumprira sua função para nos ajudar a entender a “culpa” de Joseph K.  vivendo a pleno a misoginia  que se disfarça em sedução legitimada. 
Ao buscar apoio em conexões “K” como parte de sua tática procura o pintor Titorelli, armado com uma carta de recomendação.  Titorelli conhecia e havia pintado vários juízes. Seria um forte aliado. Os nomes em Kafka tem forte significado simbólico. É possivel que “Titorelli” seja a combinação racional da arte e da ciência, simbolizados nos nomes renascentistas de Tintoreto e PaoloToscanelli, o grande racionalista e geógrafo do século XV.
O texto se adensa a partir deste encontro.  No lugar em que vivia Titorelli as casas eram “ainda mais escuras” e o ar “ mais pesado e difícil” ( 44 ) . A “escuridão “ crescente é  símbolo de sua desorientação acelerada.
No studio do pintor “K” vê o retrato de um juiz, sentado na cadeira da Justiça. Pergunta: por que este tipo se faz grande e importante, passando pelo que não é, por um Presidente da Corte ?
A resposta é um ensinamento. São todos vazios em sua vaidade é o que responde Titorelli  . “Joseph K” não entende que a projeção falsa do ego feita pelo cliente de Titorelli era uma réplica de sua própria atitude ante a vida.
O diálogo que se segue é expressivo. O pintor pede que “K” fale com franqueza. “O sr. é inocente? “ A resposta é enfática: “ sou completamente inocente” ( 45 ) . 
Na seqüência o pintor conclui : “ O sr. parece não ter formado uma idéia correta sobre a Corte mas desde que se afirma inocente não lhe é necessária esta idéia”. (46) .  
Importantíssima para a exegese da novela esta observação de Titorelli!  De nada adiantava insistir. O “despertar” não se completava e a “escuridão” se adensava.  É a parte em que Titorelli examina as diversas formas de absolvição falando sobre o que já foi discutido anteriormente. A  “absolvição total” ninguém logrou ainda.
“K” abandona o pintor. Decide procurar um advogado. Na casa do advogado encontra o comerciante Block “ segurando um castiçal na mão”. Estava claro que se tratava de outro “cliente”. Quando se apresenta a “K” o tipo diz-lhe apenas  “Block o comerciante” ( 47) . O homem não existia. Só a profissão, o status.  Na conversa vem a saber que o caso de Block com a Corte começou logo depois da morte de sua mulher ( 48 ).
Para quem domina o jogo de símbolos kafkiano fica claro que só uma crise de grandes proporções é capaz de abalar o falso ancoradouro de certezas do “homem comum” abrindo perspectiva para a revisão da vida. Block foi atingido pela morte da companheira e o desacerto de sua rotina. “K” pela crise dos 30 anos .        
Ao fim da novela, ao sair da Catedral, “escuridão, nada além de escuridão o cercava por todos os lados. Comenta : “ está tão escuro por toda parte” ( 49 )
O arremate do capitulo  é definitivo. Indaga se o padre não queria nada mais dele. “Por que haveria de querer alguma coisa de você ? A Corte nada quer de você. Ela o recebe quando você chega e o despede quando você vai.” (50 ) .
A partir deste momento “K” aguarda sua sentença. A figura feminina vai reaparecer.  O condenado vê a figura de uma mulher. Julga ser F. Burstner e a partir desta convicção aceita sua sentença procurando manter viva na memória final a “ importante lição que essa presença lhe trazia ao espírito” (51) .  Ele, que sempre “agarrara o mundo com vinte mãos e nem sempre por motivos nobres”, deixa de lutar e caminha para a morte. ( 52) .
Sua execução é patética. Kafka a faz parecer com a morte de um animal, à faca. Morre “como um cão” segundo ele mesmo percebe em seu último rasgo de semi lucidez.
   Joseph K desaparece para sempre, imerso na mesmice dos dias, invulnerável ao remorso e à culpa.  Luta em sua  vida como se luta em  um  naufrágio, nadando como se pode, entre destroços alheios, espalhados aqui e ali  na guerra competitiva.
Somos todos números de um rebanho sem nome a marchar nos quadros da história, construindo, com  trabalho anônimo e o egoísmo ontológico de todos os “ Joseph K, “ o arcabouço material de uma sociedade de futuro incerto porque sem  sentido claro, maquinizada em grau crescente , transformando o homem em peça de uma engrenagem gigantesca , sem destino previsível.      

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